Na semana entre os dias 24 e 28 de Março ocorreu a 10ª edição da “Semana do Apartheid Israelense” no Brasil, organizada pela Frente Palestina da USP, da qual fazem parte muitos de meus colegas de minha viagem de Janeiro com a Faculty For Israeli-Palestinian Peace (FFIPP). A Semana contou com diversos eventos para a exposição e o debate da Questão Palestina, nos campi da Cidade Universitária da USP, PUC-Perdizes e FMU-Liberdade. Foi interessante e positivo ver engajados em discussão – e, com frequência, em embate –, colegas de curso os quais nunca tinha visto se manifestar a respeito da questão, amigos da comunidade judaica que compareceram para expressar um contraponto sionista ao que viam como um discurso unilateral e parcial, e colegas da FFIPP.
O primeiro evento foi uma mesa na própria PUC, com o polêmico título “Do apartheid sul-africano ao israelense”. Na mesa estava um dos meus coordenadores da FFIPP, o jornalista e historiador Arturo Pacheco, acompanhado de ativistas sul-africanos pró-Palestina, um dos quais havia sido um prisioneiro político durante o regime do apartheid, para traçar um panorama histórico da ideologia sionista, seu desenvolvimento até os dias de hoje, e seus paralelos com a segregação na África do Sul. Compareceram alguns amigos meus da comunidade judaica, pretendendo realizar Hasbará, isto é, ‘defender’ Israel contra o que viam como acusações caluniosas. Um de meus amigos foi o mais combativo em suas perguntas, e quando se declarou como “judeu e sionista”, foi recebido com os gritos de uma mulher da plateia – Sara as-Suri, uma palestina nascida na Síria, refugiada da Guerra Civil: “Este não é um espaço de debate, este é um espaço de solidariedade ao povo palestino!”. Outras duas pessoas na plateia, conhecidas por seu ativismo pela causa palestina, o rechaçaram igualmente.
Na 4ª Feira, ocorreu em um auditório da FFLCH a mesa “Direitos Humanos na Copa da FIFA e o apartheid israelense”, contando com Marina Mattar, do Comitê Popular da Copa, e a ativista italiana Maren Mantovani, da organização Stop the Wall. Maren defendeu a campanha internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel, emulando a mesma tática que foi usada pela comunidade internacional contra a África do Sul segregacionista, e disse que seus recentes sucessos são refletidos pela preocupação das lideranças sionistas. No entanto, Israel teria um ‘plano B’ nos países do Sul Global, cuja prioridade seria a tecnologia bélico-militar de Israel e sua hidrologia, no lugar de preocupações humanitárias. Maren apontou para a cooperação de Israel com a repressão da Polícia Militar aos protestos contra a Copa.
Na 5ª Feira ocorreu a oficina “A ocupação israelense da Cisjordânia”, ministrada pelos próprios membros da Frente Palestina, a maioria dos quais colegas de viagem, e que explicou muitos dos aspectos técnicos da ocupação ilegal, como a divisão da Cisjordânia entre as áreas A, B e C, os checkpoints espalhados ao longo do muro e no interior do território, e o regime de “dois povos, duas leis” vigente nas áreas B e C, que submete colonos israelenses à lei civil (como se vivessem na Israel de jure) e palestinos à lei militar, inclusive detalhando o sistema de detenção administrativa, que permite às autoridades israelenses deter qualquer palestino com base em “evidências sigilosas” sem direito ao contato exterior por 90 dias, por 6 meses indefinidamente renováveis. Alexandre Quintino, um dos membros da Frente, contou de sua experiência estagiando na aldeia de Yanoun, no norte da Cisjordânia, assediada pelo avanço de assentamentos religiosos e nacionalistas como o de Itamar. Adriana Tavares comentou a questão da água na Palestina, e sua distribuição desigual manejada pela empresa israelense Mekorot.
Neste dia, reencontrei o prof. Samuel Feldberg, professor de Relações Internacionais da USP e Rio Branco, quem, em uma de suas palestras no Renascença, foi uma das pessoas que me inspirou a fazer RI. Depois da oficina, o professor conversou com os membros da Frente, e expressou concordância em muitos pontos, revelando inclusive ter visitado os Territórios Ocupados com organizações israelenses como Shovrim Shtikah (Breaking the Silence) e B’Tselem. Foi interessante ver como o professor e os membros da Frente discutiam as questões e o futuro do conflito de forma ponderada e objetiva.
Na sexta, último dia da Semana do Apartheid, foi discutida a situação dos refugiados palestinos em meio à Guerra Civil Síria. A palestra foi aberta pela mesma mulher que se exaltou na mesa de segunda, Sara as-Suri, que abriu com a frase “Uma vida que se define apenas como antítese à morte não é vida”. Sara descreveu o horror sob o qual vivem os refugiados palestinos do campo de Yarmouk, em Damasco, e disse que a luta dos sírios contra Assad é análoga e irmã da luta dos palestinos contra Israel. Mas sua frase que mais impressionou a plateia foi que “Após libertarmos a minha Damasco natal, eu mesma sairei daqui de São Paulo, empunharei uma Kalashnikov e libertarei Jerusalém”. Rafael V. Levy, que estagiou com a FFIPP no campo de refugiados de Aida, em Belém, explicou a atual situação do campo, que está sendo vítima de incursões e bombas de gás lacrimogêneo do Tzahal. Manuel da Furriela, da Comissão de Refugiados da OAB, comentou sobre as especificidades jurídicas da condição do refugiado.
No geral, sinto que a Semana do Apartheid foi a minha primeira experiência desde minha volta de Israel-Palestina em um debate engajado e, em certo grau, aparelhado em ambos os lados. Foi defendido que o evento é abertamente posicionado politicamente e não é neutro nem se pretende assim. Opiniões de Hasbará por parte da plateia logo sempre são esperadas, uma vez que estas de fato não são expressas pela mesa. Porém os próprios organizadores da Semana não esperavam um nível tal de exaltação de alguns setores da plateia e da mesa, especialmente entre os que associam sua militância pró-palestina com sua filiação partidária.
Ideologicamente, as palestras não me representaram uma grande transformação, não ouvi lá nenhuma informação relevante que já não tivesse visto durante minha viagem. Sim, o uso do termo “apartheid” para descrever o Estado de Israel continua a me incomodar – e nem poderia deixar de ser, referindo-se a um país ao qual fui, em toda minha educação judaico-sionista, ensinado a amar e reverenciar. Mas também aprendi, vendo amigos meus dos tempos da escola discutindo com colegas de viagem, que se referir a Israel como uma “democracia” me deixa igualmente desconfortável.
Gostei! Ponderado, lúcido. Parabéns
Gostaria que voce explicasse melhor pq não considera Israel uma democracia…
– cidadãos homens e mulheres votam e podem ser votados, independente de sua religião
– há no parlamento israelense representantes eleitos dos diversos setores da sociedade, inclusive alguns que são contra a existência de um estado judeu
– há representantes diplomáticos de Israel em vários países que são muçulmanos ou druzos
– o árabe é tratado como idioma oficial, embora seja idioma de apenas uma das minorias que lá moram.
– há partidos politicos representando todo e qualquer grupo, desde defensores de liberação da maconha, sobreviventes do holocausto, ultraortodoxos, árabes, comunistas, religiosos, anti religiosos, etc.
Além disso, em comparação com outras ditas democracias o ‘grau de democracia’ de Israel não está abaixo de nenhum outro país, e aqui vão alguns exemplos:
– no Brasil, temos deputados/vereadores eleitos que pregam abertamente contra o homossexualismo
– a Russia é uma democracia com pretensões claramente expansionistas que anexou territórios da Ucrânia
– a Argentina é uma democracia há uns 15 anos com o mesmo partido no poder, sabidamente desvirtuando a economia e manipulando a política nacional; sem contar o acobertamento às investigações dos ataques terroristas perpetrados sabidamente por membros do governo do Irã
Israel é sim um país criado como aspiração nacional do povo judeu, o que não impede outras minorias de serem representadas, e, assim como qualquer democracia, não é perfeita; assim como em qualquer democracia, nem sempre os anseios das minorias são bem sucedidos. Mas (para o bem e para o mal), esta é a forma com que as sociedades implementaram a democracia.
Se democracia é ou não a melhor opção de governo, se democracia realmente respeita os direitos de todos os seus cidadãos ou não ou se a humanidade encontrou formas de governos melhores ou não, estas são outras discussões.
Ah, mais um comentário que me incomodou bastante no seu texto:
Ficar “incomodado” com o uso do termo Apartheid, e sentir-se” igualmente desconfortável” com o uso do termo “democracia” me parece ser um tanto quanto tolerante com o uso do termo Apartheid, e, mais ainda, um desconhecimento (ou talvez desrespeito) ao que foi o Apartheid na África.
Uma banalização do Apartheid que incomodaria em muito a comunidade judaica se fosse feita uma comparação do Holocausto com qualquer outra situação de matança. Assim como acredito que o Holocausto (por seus motivos, métodos, forma, ideologia, etc) foi único na História, penso o mesmo do Apartheid.
Olá, Dov
Sim, eu sou tolerante quanto ao uso do termo Apartheid (mesmo que não seja totalmente conivente), não por achar que ele expressa exatamente a dinâmica da questão, mas por crer que ele oferece uma descrição aproximada. Isso não me parece de nenhuma forma um desconhecimento ou desrespeito ao que foi o Apartheid, já que conheço bem a realidade em Israel e na Palestina, e sei que está longe de ser igualitária. No 1o dia de palestras, recebemos um ex-militante sul-africano contra o Apartheid, que corroborou a visão de equivalência entre os dois sistemas, e acho que ele teria mais autoridade pra falar sobre isso do que eu ou você.
A comparação com o Apartheid não é feita como quantitativa, mas como qualitativa (não se discute qual foi pior, se traça um paralelo aproximado), assim como é possível fazer com o Holocausto (reconhecer outros genocídios como Holodomor, Holocausto Armênio, etc., sem diminuir a unicidade da Shoá). Cada tragédia coletiva é única e incomparável, e o uso do termo apartheid aqui se faz mais pela descrição da ONU (como aparece no link) do que pela comparação com a África do Sul.
Espero ter ajudado. Grande abraço.
Perdão, aqui vai o link:
http://972mag.com/on-the-israel-apartheid-analogy-yet-again/90628/
As Suri mostra sua verdadeira faceta belicosa com sua “profética” frase: “Após libertarmos a minha Damasco natal, eu mesma sairei daqui de São Paulo, empunharei uma Kalashnikov e libertarei Jerusalém”.
Super da paz!
E continua com “ …Este não é um espaço de debate…” Super democrática! Se não há espaço para debate não há espaço para a verdade!
Esta é a faceta da Semana do Apartheid?
Olá Ariel!
Essa mulher, Sara as-Suri, foi uma convidada da Semana do Apartheid, e, por mais instrutivo que tenha sido o discurso dela sobre a situação dos palestinos na Síria, não posso concordar com afirmações radicais como a dela.
Quanto à Semana, ela não faz parte da Frente Palestina da USP, que organizou todos os eventos, e não, não se pode dizer que ela seja uma “faceta” da Semana do Apartheid.
Espero que tenha sido esclarecedor. Me desculpe pela demora, não costumo entrar no site com regularidade.
Um abraço
Sem problemas Raphael, no entanto ela não poderia ficar com a palavra final e sem resposta, se ela não é a faceta da semana, deveriam ter deixado isto muito claro, principalmente para ela, pois foi está a impressão que ficou. Deveriam ter pontuado que sim é um local de debates democráticos e não de apologias ao ódio e a violência. Obrigado pelo retorno, tudo de bom!
Rapahel, recomendo a leitura deste artigo, bastante imparcial:
“Outra forma de antissionismo que me causa grande desconfiança é a supervalorização dos erros de Israel em detrimento aos de outros países. Atacar Israel consequentemente e simplesmente “esquecer” o que acontece em outros lados é no mínimo estranho. De modo algum está proibido atacar Israel. Eu peço, no entanto, coerência. O regime de Assad na Síria já assassinou a mais de 40 mil pessoas, desde 2011, um número mais de quatro vezes maior do que o de todos os palestinos mortos desde 1948 em operações militares israelenses. O número de sudaneses mortos desde 1983 já ultrapassou os dois milhões de mortos. Nunca na minha vida assisti a uma passeata contra estes massacres. Nunca vi ninguém queimando bandeiras sírias ou sudanesas depois de um ataque. Nunca vi um país sendo chamado de nazi-fascista dos anos 1990 para cá que não seja Israel. A pergunta, então, é: por que os crimes cometidos por Israel são suficientes para que sua bandeira seja desenhada com uma suástica, ou queimada em manifestações, enquanto absolutamente ninguém questiona as existências dos outros países? Eu aposto que o exército israelense matou menos da metade dos civis que a Polícia Militar do Rio de Janeiro desde 1948, e nem por isso há manifestações contra a existência do Brasil ou do estado do Rio de Janeiro. Há, sim, contra a violência policial. Contra os governos que cometem crimes, não contra todo o Estado de forma geral. Mas, neste caso, os crimes do governo são suficientes para que todo o país seja atacado. Neste caso, dificilmente alguém me convencerá que este antissionismo não é antissemita.”
http://www.conexaoisrael.org/antissemitismo-ou-antissionismo/2014-05-09/joao
Oi Ariel!
Então, basicamente o que me incomoda nesse argumento – e eu já fui um grande adepto dele – é que ele tem implícita uma mensagem do tipo: “outros países fazem isso, incomode eles e não nós”; “você não pode nos criticar e criticar nossos inimigos ao mesmo tempo, você precisa escolher apenas um – e eu prefiro que sejam eles”; “se você nos criticar sem explicitamente criticar nossos inimigos também, tenho que supor que você os apoia”, ou outras do tipo.
Todas estas são, ao meu ver, falácias e impõem um debate desonesto. Chamar a atenção para as violações de outros regimes, inclusive daqueles que são inimigos de Israel, não prova o quanto Israel estaria isento de críticas. Um bom exemplo é a ONG israelense B’Tselem, que reporta regularmente sobre violações de direitos humanos e ataques a civis tanto por parte do Tzahal e dos colonos quanto por parte de palestinos.
Eu só posso falar por mim, e com toda a certeza não concordo com pessoas que criticam Israel enquanto elogiam o Hamas ou o regime de Assad, mas não há por que alguém não possa criticar ambos. Agora, se estamos em um evento ou em uma discussão sobre direitos humanos em Israel, as violações do Hamas ou do Assad não serão o centro do debate. A gente pode até tentar, mas muita gente não consegue “abraçar o mundo” e falar de toda violação em cada canto do planeta. Acabamos focando em assuntos que nos interessam mais, etc., e isso não quer dizer que sejamos insensíveis a outros que não mencionamos tanto.
Mais uma vez, espero ter sido esclarecedor. Shavua Tov e um abraço
Não ajudou… na verdade, decepcionou….
Sobre o ex-militante sul-africano que te “permitiu” usar a comparação com o Apartheid… Não é o que pensa o ultimo presidente da era do Apartheid na Africa – http://www.israelnationalnews.com/News/News.aspx/181164
A comparação não é correta nem do ponto de vista quantitativo e muito menos do qualitativo… nunca vi calçadas para palestinos, banheiros publicos para palestinos, e outras tragédias que o Apartheid impos à populacao negra. A democracia israelense não é perfeita, assim como qualquer democracia. Mais comparável ao Apartheid é a imposição islamica que o Hamas impões na Faixa de Gaza para com mulheres, homossexuais, judeus e outras minorias.
E, por mais “Apartheid” que seja, em praticamente qualquer cidade israelense há população palestina muçulmana. Quantos judeus existem em Gaza, Jerico e outras cidades palestinas??? E em qualquer outro pais árabe, qual a situaçao das comunidades judaicas? Minha familia foi expulsa e perdeu tudo que tinha em paises arabes simplesmente pq eram judeus, e outros judeus – que não eles! – estavam criando um lar nacional judaico em Israel. Para mim, a comparação com o Apartheid se aplica muito melhor a quase todos os regimes árabes ou muçulmanos bem mais do que Israel, e ainda assim eu jamais usaria esse termo para definir o que minha familia passou nestes paises.
E sobre a 972mag que vc usa como referencia, sigo alguns jornalistas palestinos deles no Twitter… criticam 100% das ações de Israel, e nunca vi uma critica sequer a qualquer ação, inclusive as indubitavelmente terroristas da outra parte.
Continuo acreditando que um militante que sofreu na pele o apartheid sul-africano tem mais autoridade para falar sobre o assunto do que um homem que, por mais que tenha ajudado a enterrar o sistema, foi parte dele por muitos anos. Sem falar que o sul-africano se dedicou a estudar a fundo o conflito em Israel-Palestina.
Você nunca viu calçadas, banheiros públicos e outros lugares segregados em Israel em si. Recomendo visitar Hebron e outras partes dos Territórios Ocupados para ver o que realmente acontece, com ruas, estradas segregadas (procure saber da rua Shuhada, em Hebron), tudo justificado (assim como no apartheid sul-africano) por “motivos de segurança”, partindo da premissa racista de que somente palestinos são a ameaça e somente os colonos israelenses é que precisam de proteção.
De fato, não há comunidades judaicas em Gaza ou Jericó, ou em muitos países árabes. E não há porque isso não possa ser chamado também de apartheid, se você acredita que o termo é válido (aliás, também acredito que exista uma forma diferente de apartheid contra palestinos em vários países árabes). Minha família foi expulsa do Egito por Nasser em 1957 por serem judeus, e isso não pode servir de justificativa para Israel segregar e expulsar palestinos. E sim, pode-se argumentar com propriedade que muitos regimes árabes também pratiquem apartheid, o que de nenhuma forma exime Israel da mesma acusação. Como já disse e repeti, não adiante defender Israel batendo na tecla do que os outros fazem de errado.
Comunidade judaica em Gaza?? Em Jericó?? De onde tirastes essas informação??