Na madrugada anterior, a garota de Gaza escreveu uma mensagem em nosso grupo. Muito assustada, relatava o medo diante do recente ataque israelense nos arredores. “A luz, o cheiro e o som das explosões são diferentes”, dizia. Procurei acalmá-la em uma conversa privada e alertei uma amiga turca em comum e próxima a ela há mais tempo, que aceitou minha recomendação para que lhe telefonasse assim que possível, tarefa que somente conseguiu completar muitas horas após termos perdido a conexão com ela. Aliviada, nossa amiga compartilhou as notícias comigo, e a meu pedido com o grupo, de que a garota e sua família passavam bem.
Acordei sobressaltada, como se tornou costume acontecer várias vezes a cada noite desde o início da guerra, e assim que meus olhos se acostumaram à luz do ipad, fui checar os últimos acontecimentos no facebook. Um dos amigos mais queridos de Gaza, com o qual tenho tido contato quase que diário há varios meses e que insiste em nos proteger das más notícias, recém publicara uma mensagem de alerta com muitas exclamações, como costuma fazer em casos limite, quando o pavor não cabe mais dentro de si. “Israel assassinou três líderes do Hamas!!! Agora eles vão reagir com muita raiva, de uma maneira como nunca se viu antes!!!”.
Tentei contato em privado, mas como já acontecera com outros durante a guerra, ele não me respondeu, nem ao telefone na manhã seguinte. Alguns silenciam por medo de serem relacionados a israelenses (judeus da diáspora como eu costumam fazer parte desta categoria), e se esforçam em apagar os rastros. Outros o fazem para externar a raiva e frustração, buscando desesperadamente materializar sua angústia diante do sentimento de impotência perante o inimigo. Mas o calar dele é outro. Não quer ser o portador de nada que macule a vida do próximo. Esforça-se além do limite para não deixar transparecer nenhum sentimento negativo por medo de ferir ou impressionar alguém. Já lhe garanti colo, ombro e ouvido nestes momentos e, poucas vezes, muito poucas mesmo, ele conseguiu compartilhar uma pequena parcela da dor e do desespero, para prontamente me pedir desculpas pelo incômodo e logo contar alguma piada. Dono de apurado senso de humor, várias vezes me fez passar das lágrimas às gargalhadas, e rimos juntos de um e de outro lado, e do ridículo de nossa situação.
Não faz muito tempo, sugeri que ele se casasse com a garota de Gaza. Garanti sua aparência de boneca, que uma vez tive a oportunidade de conferir em uma fotografia que ela prontamente ocultara, um pouco por medo, um pouco por pudor, quando percebeu minha bisbilhotice. “Casar custa muito caro”, me respondeu com pesar, sentindo-se distante de um dos poucos prazeres possíveis ali, e quase que inatingível para um morador de um campo de refugiados. Inteligente, tem garantido seu emprego na administração da importação de mercadorias israelenses em uma pequena empresa local. “Meu patrão morre de medo de me perder”, me contou rindo. Peço a Deus que possamos ser testemunhas de um novo mundo, que ele se torne um grande empresário e possa desposar nossa princesa.
“Como você sabe que não é um perfil falso?”, me indagou um novo conhecido. “Não há nada que garanta sua veracidade. Você já ouviu sua voz? Viu sua imagem?” “Não garanto”, respondi, “mas sinto”. Minha experiência de mais de dez anos em redes sociais ativou em mim um profundo senso de discernimento. Verdade que já me enganei antes, me frustrei muitas vezes, mas acertei em todas aquelas em que apostei. Se não lhe der uma chance, a verdade nunca terá espaço para se manifestar. Aprendi a aceitar o oculto como parte da cultura da região, do pudor religioso, ou como meio de precaução. Aceitar o não-dito e o não revelado como parte do acordo, me permite chegar muito mais perto da essência, me tornando um porto seguro, que é o que me importa no momento.
Pela manhã, cheguei ao grupo a tempo de apagar a mensagem da israelense, atitude que somente tomo em casos muito particulares, decidindo por ela após me certificar de que ninguém de Gaza a tinha lido, o que fizera através uma ferramenta disponível apenas para grupos pequenos e que permite saber quem visualizou cada publicação. Rapidamente a chamei em particular, tomando o cuidado de lhe dar alguma satisfação quanto à minha atitude radical. O artigo publicado na mídia israelense, que ela compartilhara na intenção de demonstrar empatia, alertava para o fato da população de Gaza ser punida pelo Hamas com a morte em caso de acusação de espionagem para Israel. Na impossibilidade de provar a suspeita, todo cuidado é pouco. Não que nossos amigos palestinos não saibam disto, mas diante do pavor em que estão vivendo, poderiam desistir da única forma de comunicação com o mundo exterior, o nosso pequeno grupo secreto. Ela aceitou minha atitude, apesar de não ter compreendido muito bem o risco, mas acreditou na minha capacidade de julgamento. Aproveitei a ocasião para lhe transmitir as boas novas: a garota de Gaza, agora professora graduada de inglês para pequenos, concordara em conversar com ela depois da guerra sobre seu apelo para que trabalhassem juntas com as crianças dos dois lados da fronteira, a fim de que através da educação compartilhada, como em outros modelos já existentes dentro do território israelense, se constituíssem laços ao invés de barreiras. O futuro já existe, mesmo que ainda em forma de ideia. Que seja construído de sonhos.
Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.
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