Alan Osmo é psicólogo, formado pela Universidade de São Paulo, está atualmente cursando um programa de aprimoramento/especialização em saúde coletiva vinculado a Faculdade de Medicina da USP. Morou em um kibutz em Israel durante 6 meses em 2008 e há alguns anos estuda o conflito entre israelenses e palestinos por meio de leituras, cursos e seminários.
Fiquei por um tempo na dúvida se escrevia e compartilhava algo sobre o assunto ou não. O que me motivou no fim foi ver, à minha volta, que muito se fala sobre o que está acontecendo, mas sentir também que há muito um uníssono ou então, como muitas vezes acontece, uma visão um pouco superficial sobre a questão.
Antes de tudo, eu também sou completamente contra e fico indignado em relação à violência arbitrária praticada por forças de um Estado contra populações civis e à consequente morte de pessoas que não tem como se defender, seja se essas pessoas vivem em Gaza, na Síria, ou nas periferias de grandes metrópoles no Brasil. Sobre os ataques à Gaza, é revoltante também o uso completamente desproporcional de forças, o fato de se dar em uma região já gravemente afetada pelo cerco e restrições de diversas ordens impostas sobretudo pelo Estado que está atacando, e de não haver ali nem mesmo forças militares constituídas para responder aos ataques. Ainda assim, resolvi compartilhar minha opinião sobre um ponto sobre o problema, opinião essa que (como qualquer opinião) pode estar errada e é passível de ser criticada.
O meu ponto é que esse conflito que está acontecendo atualmente interessa e fortalece sobretudo dois grupos: a coalização de direita que governa Israel já faz um bom tempo e o Hamas, grupo que detém o poder em Gaza já faz uns anos.
A coalizão de direita que governa Israel é composta pelos setores mais conservadores de lá, tendo muita força os religiosos e os nacionalistas radicais. Boa parte desses setores explicitamente se opõe a qualquer saída justa para o conflito em relação aos palestinos, seja a saída de dois Estados, seja a de um Estado binacional ou qualquer outra em que as pessoas que moram ou que querem morar ali naquela região possam viver e conviver com direitos iguais. Enfim, defendem, resumindo, um Estado judeu, a expansão dos assentamentos, a anexação de territórios, a restrição dos direitos dos árabes e demais minorias etc. Essa coalização de direita depende bastante para estar no poder de um discurso baseado no medo, na insegurança, na necessidade de defesa, no militarismo, e no não reconhecimento do outro de forma geral (de seu direito de existir, de viver na terra que deseja, de manter suas crenças e cultura e conviver com os outros com direitos iguais). Não à toa, é necessário guerras frequentes pra legitimar esse discurso, muitas vezes explorando casos de mortes de israelenses ou de atentados, e promovendo uma reação completamente desproporcional.
Do outro lado, o Hamas, um grupo fundamentalista religioso de direita que defende a criação de um Estado islâmico, que administra Gaza. Trata-se também de um grupo que se opõe a qualquer saída aceitável para o conflito, que defende a luta armada e a destruição do inimigo, que inclusive foi bastante responsável pelo rompimento por vários anos com o grupo Fatah, contribuindo para a divisão dos palestinos. É também um grupo que para se manter no poder depende de um discurso de violência e de não reconhecimento do outro (de seu direito de existir, de viver na terra que deseja, de manter suas crenças e cultura e de conviver com os outros com direitos iguais).
O ponto que eu queria trazer é que eu acho que a coalizão de direita que governa Israel e o Hamas dependem bastante um do outro para se manter no poder, pois a existência de um alimenta o discurso de ódio promovido pelo outro. Esse tipo de conflito que está acontecendo agora, trágico para a população civil, sobretudo a de Gaza, interessa e fortalece esses dois grupos. E acho que enquanto eles estiverem no poder, infelizmente, é difícil vislumbrar uma resolução para o conflito.
Adendo
Esse texto originalmente foi um post no Facebook. A ele se seguiu um comentário questionando a responsabilidade da população israelense no conflito e também na morte de civis inocentes em Gaza. Surgiu a preocupação de se colocar a responsabilidade unicamente nos governantes, eximindo assim a população que no fim das contas sustenta esse Estado. Isso poderia gerar uma visão passiva de que nada pode ser mudado pois afinal a culpa é dos governantes. Respondi o comentário dizendo que a população é responsável sim a partir do momento que elege seus governantes. Se não dá pra afirmar que ela é diretamente responsável pelo massacre, é no mínimo conivente. Tive a preocupação também de discutir brevemente a palavra genocídio que muitas vezes é usada para se referir ao que está acontecendo, mas que acho que é importante uma certa ressalva. Como exemplo mencionei que a taxa de homicídio no Brasil, e o número de mortos por agentes de Estado aqui, sobretudo negros (comparável em termos numéricos ao que acontece lá), também poderia ser chamado de genocídio. Entretanto, parece que se dá muito menos atenção a isso que acontece bem mais perto de nós. Por fim, foi enfatizei a importância, sim, de se mobilizar e lutar para que a realidade mude. Mas que, para isso, é bastante importante entender as forças que estão em jogo.
Um brasileiro diz:
– Ô alemão!
O meu avô era alemão.
Ele tinha um irmão mais novo.
– O irmão mais novo não existe.
O que existe é uma carta.
A capoeira diz:
– O que é que eu sou?
– Eu sou é brasileiro!
– O que é que eu sou?
Alemão?
Eu, criança, andando na rua, e me chamaram de alemão.
Meu avô era alemão judeu.
– Alemão judeu não existe.
O que existe é um refugiado.
O sonho diz:
– O irmão mais novo sozinho perdido em meio a uma guerra.
As palavras do irmão do meu avô que chegaram até mim estão numa carta.
Aqui me chamam de Cavalinho, por causa da forma dos meus dentes.
– O Cavalinho não existe.
O que existe é uma ansiedade.
A carta diz:
– Pferdchen.
Já estou farto, isso tudo é uma merda.
O irmão do meu avô sozinho em uma Holanda ocupada pelos nazistas.
– Não existe.
O que existe é Sobibor.
Sobibor diz:
– A vida, Cavalinho, não existe.
O que existe é uma pedra pra se tropeçar.
A primeira Alexandria que eu me deparei foi uma cidade grande e feia. Como Cairo que tinha acabado de conhecer, aparentemente não havia leis de trânsito. Era o tempo todo uma loucura, barulhos de buzina, carros na contramão, conversões proibidas. Não havia semáforos e a cada vez que se estava nas ruas se presenciava vários quase acidentes.
A segunda Alexandria que eu conheci foi a dos pontos turísticos. A do pilar de Pompéia, da catacumba, das mesquitas, da citadela e da biblioteca. Esses lugares eram bastante frequentados por aqueles turistas típicos com suas câmeras fotográficas.
Rua Luxor, em Alexandria
A Alexandria que eu queria encontrar, entretanto, era a Alexandria do meu pai. Queria caminhar pela mesma calçada da praia que tinha ladrilhos quentes devido ao sol e que outrora queimavam seus pés. Queria ver a rua Luxor, onde ficava sua casa, e suas redondezas, onde costumava brincar. Queria ver a praça que tinha um monumento de um cavalo imenso, onde ficava a loja de seu avô. Queria comer aqueles deliciosos biscoitos que os egípcios chamam de ghouraieba. Meu pai viveu no Egito, mais precisamente em Alexandria, até os seis anos de idade e o que restou desse período foram apenas poucas lembranças de infância.
Fui pro Egito com alguns amigos em um desses pacotes turísticos. O pacote era de quatro dias, sendo dois em Cairo, um em Alexandria e um no Monte Sinai. Era tudo organizado pelo hotel em que ficamos. O pessoal de lá estava responsável por nossos passeios, por nos levar e buscar dos pontos turísticos de carro.
Ao aceitar ser um turista no Egito, me dispus a estar sujeito a como um turista costuma ser visto em qualquer lugar turístico. Ou seja, como um gringo que veio gastar dinheiro.
Eu queria confiar nas pessoas. Queria estar aberto ao outro, aberto a uma nova cultura. Não gostava do comportamento da maioria dos turistas. Não gostava de estar onde estava muitos turistas. Sentia que, por eu ser visto como gringo, não podia confiar nas pessoas, pois sempre havia algum interesse por detrás. Essa sensação me gerou um incômodo tão grande, que eu acabei passando indiferente por uma pirâmide em cima de um camelo. E o incômodo se tornou muito maior quando eu senti que precisava pedir ajuda pra conseguir conhecer o lugar onde nasceu meu pai. Ou seja, justamente quando eu senti que precisava tirar a máscara de gringo com uma câmera fotográfica pra me mostrar um filho em busca do passado do pai.
Perguntei ao motorista que estava nos levando a Alexandria se ele conhecia a rua Luxor.
- Não.
- Fica perto da Cornische.
- Mas você sabe o tamanho da Cornische?
- Se for possível, eu gostaria de ir a rua Luxor. Essa foi a rua que meu pai morou há 50 anos atrás. Isso é importante pra mim.
Depois de um tempo em que não se falou mais sobre isso, enquanto seguíamos o roteiro padrão de Alexandria previsto no pacote que tínhamos comprado, eu relembrei o motorista. Pedi a ele pra perguntar a alguém onde ficava a Rua Luxor. Então, quando reencontrei-o depois de retornar ao carro de mais um ponto turístico, ele me disse que a Rua Luxor sim existia, mas que ficava muito, mas muito longe.
E, assim, eu entrei triste na citadela, indiferente à sua história. Subi em um lugar em que era possível ter uma vista da cidade. Enquanto passava meus olhos diante dessa Alexandria que estava à minha frente, ficava pensando em como eu encontraria a Alexandria do meu pai. Decidi que eu não queria saber mais daquele motorista, que não queria saber mais da citadela e de outros turistas, decidi que iria pegar um taxi pra chegar à rua Luxor. Avisei, então, meus amigos e fui conversar com o motorista pra combinarmos um ponto de encontro.
Mas parecia que ele não queria me ouvir.
- Escuta, você sabe o tamanho de Alexandria? Se você não sabe o distrito em que fica essa rua Luxor, você nunca vai chegar lá. Pode ser que haja várias ruas Luxor em Alexandria.
- Se você não sabe chegar lá, não tem problema, eu pego um taxi. Isso é muito importante pra mim.
- E por que é importante encontrar uma rua de cinquenta anos atrás, que você nem sabe se existe mais? Alexandria hoje é uma cidade completamente diferente!
Nesse momento, eu já tinha lágrimas nos olhos e só conseguia repetir:
- Isso é importante pra mim. Esse é o lugar em que meu pai viveu.
Em algum momento, uma raiva intensa passou a fazer companhia às minhas lágrimas. Era uma raiva que se dirigia ao lugar em que estava e às pessoas à minha volta. Parecia não existir possibilidade de comunicação. Senti que não consegui fazer com que me vissem como alguém além de um gringo que veio sair sorrindo em uma foto em frente à citadela de Alexandria.
Ao final do que estava programado pro dia, entrei no carro triste e conformado. Estava cansado. Talvez aquela Alexandria do meu pai não existisse mesmo. Ou talvez ela existisse apenas dentro de mim. E apenas dentro de mim eu poderia encontrá-la, apenas dentro de mim poderia guardá-la.
O motorista, que no fundo não era insensível nem indiferente, me levou para comprar ghouraiebas. E quando, ao estarmos saindo da cidade, passamos por uma praça com uma estátua de um cavalo, ele disse:
O filme Noite e Neblina (Nuit et brouillard), feito no ano 1955, partiu de uma encomenda do Comitê Histórico da Segunda Guerra Mundial a Alain Resnais. Ele aceitou dirigir o filme apenas quando o escritor francês Jean Cayrol passou a colaborar para o projeto. Resnais pensava que apenas alguém com a experiência de ter passado por um campo de concentração poderia dar conta de semelhante trabalho, e Cayrol foi um sobrevivente do campo de Mauthausen.
Cayrol participou da resistência francesa no período de ocupação nazista na França, foi preso e mandado a Mauthausen. Ele escreveu sobre sua experiência no campo, no ano de 1946, em um livro chamado Poèmes de la nuit et brouillard, título que viria a inspirar o nome do filme. Jean Cayrol foi o responsável pelo texto de Noite e Neblina.
A música do filme ficou a cargo de Hanns Eisler, judeu alemão, músico, que fugiu da Alemanha no ano de 1933.
Noite e Neblina tem apenas 31 minutos de duração. Ele não se propõe a ser um guia compreensivo do Holocausto. Phillip Lopate (2003), em um ensaio sobre o filme, defende que se trata de um anti-documentário, pois não seria possível “documentar” esse tipo de realidade. Nesse sentido, o filme rejeitaria as presunções de neutralidade objetiva do tradicional documentário. Ele seria antes um esforço de análise e compreensão do que ocorreu.
O filme alterna imagens coloridas com imagens em preto e branco. As coloridas representariam o presente, em que a câmera encontra diferentes campos de concentração (que não são identificados) dez anos após o Holocausto. Elas contrastam com as imagens em preto e branco, que consistem em fotos e filmes, retirados de arquivos, relativos ao período em que o horror nazista estava sendo perpetrado.
Imagem de “Noite e Neblina”
Quando Noite e Neblina estava pronto, houve grande dificuldade de fazê-lo passar pela censura francesa. Os censores haviam implicado com imagens que mostram policiais franceses que trabalhavam em um campo na França administrada pelo governo Vichy, que servia de local intermediário para pessoas que foram deportadas para os campos de extermínio. Eles não queriam que fosse mostrado o lado colaboracionista da França durante a Segunda Guerra Mundial. Resnais recusou-se a cortar as imagens e, quando recebeu a ameaça de que tirariam os últimos dez minutos de seu filme, aceitou cobrir os chapéus dos policiais, de modo que eles não fossem identificados como franceses.
Outra polêmica, relacionada à censura, aconteceu no Festival de Cannes, para o qual o filme foi selecionado. Oficiais da embaixada alemã ocidental na França exigiam que o filme fosse retirado da seleção de filmes do festival. Apesar de protestos, Noite e Neblina foi substituído na última hora por outro documentário. Após muita discussão, o filme foi exibido fora da competição.
Noite e Neblina ganhou o Prix Jean Vigo, que é um prêmio francês para jovens cineastas. O filme teve uma recepção muito positiva na França e chegou a ser selecionado pelo Festival de Berlin para uma sessão oficial, no mesmo ano.
Objetivos do trabalho
Neste trabalho procuro fazer uma reflexão sobre o filme Noite e Neblina a partir do tema da representação do Holocausto nas artes. Para isso, uso como referência principal o artigo de Reuven Faingold chamado O Holocausto nas artes: os limites da representação (2009) e o texto escrito por Jean Cayrol, que é falado durante o filme. Para o texto de Jean Cayrol, foram utilizadas tanto a legenda em inglês de uma nova edição do filme (Resnais; 2003), que faz parte da “The criterion collection”, quanto uma tradução feita por Juan Hernandez, disponível em http://cinemaholocausto.wordpress.com/tag/jean-cayrol .
Como procuro demonstrar adiante, a questão dos limites da representação permeia o filme, assim como as implicações éticas de se abordar o tema do Holocausto. Isso aparece não apenas no texto de Jean Cayrol, mas também pelas opções técnicas do filme utilizadas por Alain Resnais.
Escolhi algumas cenas do filme que me pareceram pertinentes, a fim de desenvolver a reflexão acerca da representação do Holocausto nas artes. Não tenho a pretensão de fazer uma análise do filme como um todo.
Primeira cena – início do filme
Noite e Neblina abre com uma imagem de uma paisagem tranqüila, com uma música calma de fundo e com uma voz suave do narrador. Esta voz diz: “Inclusive uma paisagem tranqüila, Inclusive uma pradaria (…), Inclusive uma estrada por onde passam carros, camponeses (…), pode conduzir simplesmente a um campo de concentração” (Cayrol, 1955).
O primeiro elemento estranho àquela paisagem bucólica, e que mostra realmente de qual local se trata, é uma cerca com arame. São citados, então, nomes de inúmeros campos de concentração e as filmagens mostram, imagens de dentro do campo, suas construções. A câmera passa a se mover mais depressa, a voz do narrador torna-se mais intensa e mais ansiosa: “The blood has dried, the tongues have fallen silent” (Resnais; 2003).
Aparentemente há uma quebra nesse ponto. As imagens passam uma idéia de que a câmera está sozinha no campo, que não há mais ninguém além dela. Sensação de silêncio.
O filme se inicia com um distanciamento intencional em relação ao tema que vai abordar. O movimento de distanciamento e aproximação vai acompanhar o filme todo, ficando claramente distinguível pelo uso das imagens coloridas – que representam o presente, distante – e pelo uso das imagens em preto e branco – que representam o passado, o horror de perto.
A idéia de que até em uma paisagem tranqüila e bonita pode se encontrar um campo de concentração carrega uma espécie de alerta. E com isso o filme faz a transição daquele aparente distanciamento para aproximar-se do tema que ele vai abordar.
Fundamental, entretanto, para se abordar o tema, é o silêncio: pois não há palavras para representar o horror do que aconteceu. O silêncio expressa a impossibilidade de comunicar a experiência do Holocausto a todos àqueles que não a viveram (Faingold; 2009). O tema do filme se refere, portanto, a algo que é incomunicável, mas que deve ser comunicado.
Por conta dessa necessidade de se comunicar, Noite e Neblina alerta em relação ao perigo de outro tipo de silêncio: aquele que acompanhou, em grande parte, o Holocausto e que também prosseguiu, de certa forma, no período pós-guerra; não se queria falar sobre isso e não se podia falar sobre isso.
Em busca de quê?
Após aquela primeira cena do campo de concentração, são mostradas imagens em preto e branco que se referem ao regime nazista: um discurso de Hitler, um desfile do exército nazista. Ao mesmo tempo em que aconteciam aquelas coisas, campos de concentração estavam sendo construídos. Quem os construía? – se questiona a voz do narrador.
Por meio de fotos e de alguns filmes do período, são mostradas imagens das deportações. O filme procura resumidamente, por meio desses documentos, contar o que aconteceu. Não propriamente de modo objetivo, pois a voz do narrador transmite ironia quando fala das pessoas que participaram da construção do campo; transmite angústia quando fala dos trens em que as pessoas embarcavam e das terríveis condições de viagem. Essa parte em preto e branco termina com as imagens de um trem chegando na “noite e neblina”.
As cenas tornam-se coloridas novamente: são imagens do campo de concentração no presente. O narrador diz: “Hoje, sobre o mesmo caminho, é dia e brilha o sol. O percorremos lentamente, em busca de quê?” (Cayrol; 1955).
É possível observar mais uma vez o contraste entre os momentos: a luz do dia do presente, com a noite e neblina do passado; a aproximação e subitamente o distanciamento.
Lopate (2003) chama a atenção que há uma busca de uma conexão entre local – os campos em que estavam feitas as filmagens, dez anos depois – e história; entre arquitetura e morte. A câmera parece encontrar nos campos apenas uma paisagem, uma arquitetura, mas sua busca é atingir o que está por trás de tudo aquilo, o que se esconde na história daquele local.
Para além de uma mera dificuldade de uma representação objetiva de um fato histórico, uma das especificidades na representação do Holocausto, como aponta Faingold (2009), é a extrema dificuldade na correlação entre esse fato histórico singular e sua expressão diante do terror e da angústia. Segundo o autor, “os limites da representação do Holocausto são, também, os limites da memória do horror”.
Quando as cenas em preto e branco voltam, são apresentadas imagens de dentro do campo de concentração. A voz do narrador diz: “Primeiro olhar sobre o campo” e, simultaneamente, aparece a imagem de um rosto – possivelmente algum prisioneiro – com uma feição extremamente assustada.
O horror expressado no rosto anuncia as imagens que estão por vir, que buscam retratar as pessoas no campo de concentração.
Limites da representação
Outra cena da filmagem em cores, em que está sendo retratado o alojamento, as camas, de um campo de concentração, o narrador questiona: “What hope do we have of truly capturing this reality? (…) No description, no image can reveal their true dimension: endless, uninterrupted fear”. E, depois, parece concluir: “We can but show you the outer shell, the surface” (Resnais; 2003).
O texto, escrito por Jean Cayrol, expressa constantemente a limitação da própria obra. Apesar de uma busca por capturar a realidade dos campos de concentração, as imagens mostram apenas a superfície. A dimensão verdadeira de quem realmente viveu aquilo não é representável por nenhuma imagem.
Faingold (2009) aponta que o debate em torno da (im)possibilidade de representação do Holocausto faz parte da própria memória do Holocausto. O paradoxo consiste que há um dever ético de se lembrar o que aconteceu, e ao mesmo tempo há uma impossibilidade de representá-lo. Outra questão importante é que não haveria um elo entre a representação do Holocausto e a experiência do Holocausto. Existe aí um abismo que não deve ser atravessado.
Educação para que Auschwitz não se repita
Lopate (2003) aponta que Noite e Neblina tem um uma grande importância como filme anti-guerra e anti-violência. Seria apenas recordando, olhando para trás de forma reflexiva, buscando compreender o desastre que aconteceu, que seria possível prevenir atrocidades semelhantes.
Isso fica bastante explícito na última fala do narrador do filme, que acontece após cenas dos julgamentos de nazistas em que eles diziam que não eram os responsáveis:
Who among us keeps watch from this strange watchtower to warn of the arrival of our new executioners? Are their faces really different from our own? (…) We pretend to take hope again as the image recedes into the past, as if we were cured once and for all of the scourge of the camps. We pretend it all happened only once at a given time and place. We turn a blind eye to what surround us and a deaf ear to humanity’s never-ending cry (Resnais; 1955).
Uma preocupação que parece estar presente aí, seguindo a linha de Adorno (1986), é de uma educação para que Auschwitz não se repita. Foram pessoas como nós os carrascos e foram pessoas como nós as vítimas. Isso aconteceu uma vez e pode, caso não dermos a devida atenção ao que se passou, se repetir mais uma vez.
É interessante destacar, porém, que o filme em nenhum momento identifica quais os campos de concentração que estão sendo filmados, nem quem são as pessoas que aparecem nas imagens. Não há menção ao anti-semitismo imbricado na ideologia nazista, e nem que a maioria das vítimas era composta por judeus. Noite e Neblina transmite uma espécie de universalização da experiência das vítimas e da identidade dos perpetradores. Isso o levou a ser criticado, por exemplo, pelo cineasta brasileiro-israelense David Perlov, que chama a atenção que a universalização seria uma forma de diluir o que aconteceu. O Holocausto tem uma marca judaica que não pode ser ignorada.
Referências
ADORNO, T. A educação após Aushwitz. In: Gabriel Cohn (org): Theodor Adorno- Sociologia. São Paulo: Ática, 1986.
FAINGOLD, R. Holocausto nas artes: os limites da representação. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG – Volume 1, n.5 – outubro, 2009.
LOPATE, P. Night and fog. In: RESNAIS, A. (1955) Night na Fog. [filme – curta-metragem] – “Special Features”. U.S.A., Argos Films, “The Criterion Collection”, 2003. DVD, 31 min. Color and Black and White.
RESNAIS, A. (1955) Night na Fog. [filme – curta-metragem] Direção de Alain Resnais, texto de Jean Cayrol. U.S.A., Argos Films, “The Criterion Collection”, 2003. DVD, 31 min. Color and Black & White.
Esse trabalho foi originalmente escrito como parte da avaliação da disciplina de graduação “Cultura do povo judeu nos tempos modernos I” ministrada em 2011 pela professora Marta Topel na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.