Raphael Lagnado

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Raphael Lagnado cursa Relações Internacionais na PUC-SP, tendo estudado nos colégios judaicos Bialik e Renascença. Também colabora com a FFIPP, atual Educational Network for Human Rights in Palestine and Israel.

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Hafradá, a “separação” palestina

Dentre todas as polêmicas que compõem o debate em torno do conflito Israel-Palestina, acentuadas nas últimas semanas devido ao recrudescimento do conflito entre Israel e o governo do Hamas na Operação Limite Protetor, provavelmente uma das questões mais espinhosas se refere à acusação de que Israel exerceria um regime de “apartheid” em relação à população palestina nos Territórios Ocupados, e talvez até mesmo dentro de Israel – emulando o apartheid (do africâner, “separação”) original, imposto pela elite branca da África do Sul à população negra, mestiça e indiana.

Partidários desta visão apontam para a situação na Cisjordânia, de gritante discrepância entre a situação econômica das vilas palestinas nas áreas B e C (sob controle total ou parcial israelense) se comparadas aos assentamentos israelenses, protegidos pelo exército e subsidiados pelas políticas governamentais e empresas privadas de Israel; os checkpoints no coração do território, que dificultam significativamente a liberdade de movimento; chegando ao extremo de existir estradas separadas para colonos israelenses e para a população palestina. Já críticos do uso do termo apartheid chamam atenção para as diferenças entre Israel e a África do Sul: cidadãos palestino-israelenses (i.e. somente nos territórios de 1948), por exemplo, possuem igualdade nominal e direitos civis, existem palestinos servindo na IDF e membros do Knesset, o parlamento israelense, etc. Também há quem argumente que descrever a política de Israel como apartheid diminui e desrespeita a memória coletiva das vítimas do regime segregacionista.

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Muro dividindo o campo de refugiados de Shuafat do assentamento de Pisgat Zeev, em Jerusalém Oriental.

Apesar da negativa das autoridades israelenses, e de seus aliados no exterior, de que Israel praticaria uma forma de segregação entre sua população judaica-israelense e árabe-palestina, grande parte das políticas de Israel para a Cisjordânia e Jerusalém Oriental pode ser enquadrada dentro do escopo de um termo da língua hebraica – surgido, supreendentemente, do interior do establishment político e acadêmico israelense e promovido pelos formuladores de suas políticas de segurança –; a palavra hafradá (orig.: הפרדה), cuja tradução literal seria, assim como apartheid, “separação”, “divisão” ou “segregação”. Ativistas pela causa palestina, como o americano-israelense Jeff Halper, do Israeli Committee Against House Demolition (ICAHD), argumentam que hafradá, guardadas suas semelhanças significantes com apartheid, constituiria uma descrição mais aguçada da “visão e política de Israel para com os palestinos nos Territórios Ocupados”.

O termo hafradá começou a assumir seu caráter político-paradigmático e adentrar o uso corrente tanto dos meios oficiais quanto da população civil israelense a partir da década de 1990, com os trabalhos do professor da Universidade de Haifa Daniel “Dan” Schueftan, e com certas “políticas de segurança” adotadas pelo então primeiro-ministro Yitzhak Rabin, como a barreira que separa Israel da Faixa de Gaza. A palavra também apareceu em campanhas políticas, sempre carregada de uma conotação positiva, como na eleição de Ehud Barak para primeiro-ministro, em 1999, realizada sob o slogan “Nós aqui. Eles lá”. Na época, não estava explícito onde exatamente seriam “aqui” e “lá”. E em 2001 Ariel Sharon se elegeu prometendo prover “paz e segurança” fazendo uma “hafradá do comprimento e largura da terra”.

No ano de 2002, a hafradá passou a ser associada à ideia, promovida por Sharon, de “desengajamento unilateral” (orig.: “Hafradá Chad Tzdadit”), da qual fazia parte a construção, iniciada neste mesmo ano, da barreira de separação (orig: “Geder HaHafradá”), que se estende em parte na Linha Verde que separa Israel dos Territórios Ocupados, em parte Cisjordânia adentro, mantendo do “lado de cá” grande blocos de assentamentos, como Gush Etzion e Ariel, e isolando cidades palestinas como Qalqilyah e Belém do “lado de lá”, e continua sendo construída até o momento. O nome original da iniciativa, “Plano de Separação”, foi trocado por “Plano de Desengajamento”, pois, como admitiu o próprio Sharon em sua biografia, “‘Separação’ soava mal, especialmente em inglês, pois evocava apartheid”.

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Mapa da organização israelense B’Tselem detalhando o estágio de construção do muro em 2006.

O plano de desengajamento de Sharon foi adotado oficialmente por Israel em 2005, e constituiu uma estratégia pragmática para o avanço e a normalização da ocupação na Cisjordânia. Foi e continua sendo executado unilateralmente, i.e. imposto sem o consentimento da Autoridade Palestina ou de sua população. Parte do plano incluiu, naturalmente, cessões; todos os assentamentos israelenses na desvalorizada Faixa de Gaza foram forçosamente demolidos, e seus nove mil colonos foram evacuados ou deixaram o território voluntariamente. Eleições foram convocadas para a Autoridade Palestina em 2006, resultando numa vitória apertada do islamista Hamas sobre o laico e moderado Fatah, vitória essa que não foi reconhecida por Israel, EUA, a União Europeia e a maioria do mundo ocidental, que se pôs a sancionar economicamente a Autoridade Palestina. Tensões entre ambas as facções acabaram explodindo com a Batalha da Faixa de Gaza em Julho de 2007, na qual o Hamas acabou por derrotar o Fatah em uma guerra civil de baixa escala, e estabeleceu controle total sobre o pequeno território. O Fatah, por sua vez, continuou a controlar a Área A da Cisjordânia. O resultado no longo prazo você confere em qualquer jornal ou site de notícias dos últimos dias.

O doutor Schueftan, em uma entrevista ao The Jerusalem Report em 2005, após a adoção oficial do “Plano de Desengajamento”, afirmou que este constituía apenas o primeiro passo em um “processo histórico mais amplo”, e que a “característica subjacente” do desengajamento não é que ele trará paz, mas sim que impedirá o “terror perpétuo”.

Qual é a importância do conceito de hafradá no contexto da Operação Limite Protetor? Pra começar, eu coloco minhas fichas que Israel não vai reocupar militarmente a Faixa de Gaza, tendo ou não capacidade para isso. Além da divisão Hamas-Fatah ser benéfica pra execução do “Plano de Desengajamento”, o Hamas ainda garante alguma estabilidade ao território, contendo outros grupos mais radicais, como a Jihad Islâmica. Um retorno à situação pré-2005 seria extremamente custoso para Israel, exatamente o contrário do que pretende o “desengajamento”, i.e., manter uma ocupação estável e barata.

Como parte do processo amplo e de longo prazo da hafradá, está previsto o estabelecimento de um Estado Palestino independente nas áreas mais densamente populosas (Ramallah, Belém, Jericó, Jenin, Nablus, parte de Hebron, etc.) – cabendo aqui perguntar, qual seria o grau real de independência de uma instância administrativa operando em território descontínuo (somente na área A da Cisjordânia), com uma autonomia imposta por Israel, ao invés de negociada, e economicamente dependente? Novamente, a semelhança com os bantustões sul-africanos é preocupante.

O professor de Biologia Eitan Harel, da Universidade Hebraica de Jerusalém, disse ao Le Monde Diplomatique em 1996: “O sonho da Grande Israel foi substituído pela realidade de uma Israel menor. O que importa para as pessoas é viver melhor aqui, e se você lhes perguntar pelo que elas desejam e esperam, a resposta da maioria é: hafradá, separação”. Ao mesmo tempo em que a hafradá é a desistência de uma Grande Israel, representa, no entanto, também a consolidação da presença israelense na Cisjordânia – e, especula-se, o fim do paradigma da solução de “Dois Estados Para Dois Povos”.

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O “Nakba Day”

O dia 15 de Maio, comemorado por israelenses e judeus do mundo inteiro como o aniversário da Declaração de Independência do Estado de Israel no calendário solar, é também lembrado por palestinos e simpatizantes de sua causa como o “Yawm an-Nakba”, o “Dia da Catástrofe”, modo como a memória coletiva palestina marca o deslocamento forçado de aproximadamente 750 mil palestinos e a destruição de mais de 530 vilas no período da Guerra de Independência de Israel, em 1947-1949. Neste último Yawm an-Nakba, a Educational Network For Human Rights in Palestine/Israel (FFIPP-Brasil), com a qual viajei para Israel e para a Cisjordânia nas últimas férias, promoveu uma mesa de debates na PUC-SP para marcar a data.

Rafael V. Levy, que já trabalhou voluntariamente em campos de refugiados palestinos no Líbano em Julho de 2013, e através da FFIPP no campo de Aida, em Belém, na Cisjordânia, em Janeiro de 2014, introduziu seu discurso com uma fala sobre suas origens. Filho de pai judeu, Levy considera que foi criado dentro da narrativa sionista tradicional, segundo a qual os diversos regimes árabes que declararam guerra a Israel quando de sua criação, em 1948, teriam dito à população palestina para “deixarem suas terras temporariamente, e, quando acabarmos de jogar os judeus ao mar, que retornem”.

Sob esta narrativa incompleta, fica implícito que foram os governos da Síria, Líbano, Jordânia e outros que, derrotados por Israel, não teriam deixado os refugiados voltarem; ou então seriam os próprios palestinos que, por algum motivo oculto, não desejariam retornar. Não fica claro. Esta versão da história não pretende iluminar o passado ou explicar o presente, mas sim eximir Israel de qualquer culpa nos dois. Na verdade, o êxodo dos palestinos começou antes da Declaração de Independência e da intervenção dos vizinhos árabes, já em 1947, com o anúncio do fim iminente do Mandato Britânico e o estouro de uma guerra civil. As milícias sionistas Haganah e Irgun não só expulsaram forçosamente os vilarejos, como também fizeram alguns massacres em pontos estratégicos, para “liberar” áreas e espantar a população de vilarejos circundantes. Ao final, incluindo refugiados e Pessoas Internamente Deslocadas (IDP), cerca de 85% da população palestina no território acordado a Israel na trégua de 1949 foi afetada pelas expulsões.

Em seguida, Levy falou sobre a situação no campo de Aida, e sobre a atuação da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA). A UNRWA opera independente da ACNUR, agência responsável pelas outras crises de refugiados mundo afora. Aos 750 mil refugiados iniciais de 1947-49 foi negada a cidadania nos novos países, enquanto o status de refugiado foi legado aos descendentes nascidos no exílio. Hoje, mais de quatro milhões de pessoas são

reconhecidas como refugiados palestinos pela UNRWA. Além destes, aproximadamente outros cinco milhões seriam refugiados não reconhecidos. Em 1967, com a Guerra dos Seis Dias, Israel passou a ter controle sobre os refugiados nos territórios da Cisjordânia, Gaza, Golan e Sinai.

Foi mostrado à plateia um vídeo da organização Badil (“alternativa”, em árabe) feito no campo de Aida, no qual se entrevista o professor Amjad Qassis, que fala do processo contínuo da Nakba, até os dias atuais (a chamada “ongoing Nakba”); “Israel impede o retorno dos refugiados ao mesmo tempo em cria mais refugiados” diz o professor a certa altura. Aida é ladeado pelo muro israelense de separação e, apesar de estar localizado dentro de Belém, e ser, portanto, Área A, sob controle completo da Autoridade Palestina, ainda é alvo de incursões regulares do exército, muitas vezes em resposta a crianças palestinas que quase diariamente atiram pedras contra as torres de vigia do muro. Durante a entrevista a céu aberto de Mohammed Al-Azza, morador do campo, é possível escutar sons de tiros ao fundo.

Em seguida falou o professor Reginaldo Nasser, coordenador do curso de Relações Internacionais da PUC-SP. Nasser achou interessante que Levy tivesse decidido introduzir sua fala contando sobre suas origens, e a partir daí começou a tecer uma crítica à visão maniqueísta com que muitas vezes são vistos os conflitos no Oriente Médio; deu o exemplo da fala do diplomata Rubens Ricupero, que via a questão Israel-Palestina como um “conflito religioso”. Segundo Nasser, esta seria uma ideia errônea de que tais conflitos são “exóticos, distantes”, como se as questões que hoje afetam diariamente a vida de israelenses e palestinos tivessem alguma relação direta com os tempos bíblicos e não fossem fruto de projetos nacionais e interesses econômicos; como algo “quase genético”. Na verdade, a questão da Palestina é relacionável com outros contextos mundo afora, como a África do Sul, a Irlanda do Norte e a periferia de São Paulo.

Nasser também chamou atenção para pontos positivos da sociedade israelense, que estaria passando por uma “transformação social” graças à ação de ONGs israelenses de direitos humanos, como B’Tselem, responsável por documentar e divulgar para a sociedade israelense as violações de recorrentes nos Territórios Ocupados e zelar pelo cumprimento à lei internacional por parte de Israel; e Shovrim Shtikah (Breaking the Silence), que reúne veteranos do exército israelense que serviram na Cisjordânia desde a Segunda Intifada, prestando testemunhos e expondo ao público israelense o que é feito em nome de sua “segurança”, além de promover passeios de turismo político para denunciar a ocupação em Hebron. Estes grupos, diz Nasser, têm sofrido algum grau de pressão e restrições por parte do governo israelense, como na proposta de lei no Knesset que pretende listar ONGs que recebem fundos do exterior como “agentes estrangeiros”.

Seguiu a fala de Lenora Bruhn, que estagiou pela FFIPP no Vale do Jordão, região desértica de Área C na fronteira com a Jordânia, e, portanto, considerada território estratégico para Israel. As pequenas vilas palestinas, muitas vezes compostas por não mais que algumas tendas improvisadas, lidam com uma escassez crônica de água, que contrasta com a abundância verificada nos assentamentos logo ao lado, obra da política de preços discriminatória praticada pela empresa hídrica israelense Mekorot. Lenora explicou que, pela lei internacional, Israel, enquanto potência ocupante, deve zelar pelo bem-estar da população civil dos Territórios Ocupados, o que claramente não ocorre. A transferência de população civil israelense para a Cisjordânia, para assentamentos como Roi e Bekaot, também constitui uma violação das obrigações de Israel como agressor.

Atualmente, apenas 1% da terra no Vale do Jordão é destinada ao desenvolvimento; enquanto isso, 95% das aplicações feitas ao comando militar pela população palestina local para poder realizar novas construções são rejeitadas. Como consequência, a grande maioria das construções palestinas é considerada ‘ilegal’ pela lei militar israelense, e está sujeita a demolições regulares, como de fato ocorre com casas, tendas, escolas, centros comunitários e estabelecimentos comerciais no Vale. O efeito disso é a impossibilidade de uma vida normal e do pleno desenvolvimento pessoa e coletivo no longo prazo.

Por fim, falou a professora Mariane Gennari, que estagiou na Baladna, organização de sociedade civil que atua na comunidade palestina de Haifa. Mariane contou sobre os chamados “palestinos de ’48” (também conhecidos como “árabes-israelenses” ou “palestinos-israelenses”, todos termos com diferentes conotações políticas), descendentes da população palestina que não foi obrigada a se deslocar, ou de IDPs. Os palestinos-israelenses viveram sob lei militar até 1966, e não raro enfrentaram expulsões subsequentes à guerra de 1948, estendendo-se até o final da década de 1950. No Dia da Terra (“Yawm al-Ard”, 30 de Março) de 1976, muitos palestinos-israelenses decidiram demonstrar a memória de sua tragédia coletiva através de uma greve geral nas principais cidades palestinas da Galileia, como Nazaré, Sakhnin e Shefa-Amr. Esta ação de desobediência civil por parte de cidadãos israelenses foi reprimida pelo exército, que matou seis grevistas.

A educação dos palestinos-israelenses é ministrada em escolas públicas separadas, nas quais estes aprendem o hebraico e sobre a história judaica e de Israel, mas onde o conhecimento sobre história e cultura árabe e palestina é escasso. Para Mariane, a lógica por trás desse sistema é de retirar-lhes a identidade palestina e os inserir marginalmente na cultura israelense. A ação de organizações como a Baladna está focada em promover entre a juventude sua cultura e tradições diferenciadas, e impedir sua assimilação completa na sociedade israelense.

Gennari falou sobre as celebrações simbólicas feitas na vila cristã de Iqrit, cujos habitantes foram expulsos e suas casas bombardeadas no Natal de 1951, muito depois

da Guerra de Independência. Todos os anos, jovens descendentes de IDPs de Iqrit, vindos de cidades como Haifa, Nazaré e outras, se encontram nos destroços da vila para acampar durante alguns dias e renovar a memória da expulsão e a esperança de retorno. Apesar de muitos morarem a apenas alguns quilômetros de Iqrit, não lhes é permitido retornar e reconstruir as casas de seus antepassados. Em sua estada com os jovens, Mariane também comentou a situação dos palestinos cristãos, que não estão isentos do serviço militar, mesmo que muitos o recusem por razões abertamente políticas.

A questão dos refugiados é talvez a mais polêmica de todas envolvendo o conflito Israel-Palestina, porque se encontra na gênese da própria criação de Israel. Discutir a questão dos refugiados e seu direito de retorno, estipulado na Resolução 194 da ONU, significa ir além do debate sobre a ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental de 1967 e questionar – segundo muitos, deslegitimar – as bases do Estado judaico. Em todas as rodadas de negociações de paz realizadas entre Israel e a Autoridade Palestina até hoje, os refugiados estavam fora de discussão, dado o consenso quase geral de que o seu retorno imediato e em massa, além de impensável em termos de infraestrutura e logística, resultaria no fim da maioria judaica. Este cenário é inaceitável para sionistas, sejam eles liberais ou não, e muitos defendem soluções ‘alternativas’ à questão, como compensações financeiras aos descendentes de refugiados, e/ou sua integração total como cidadãos de pleno direito nos países em que vivem (o que lhes foi muitas vezes negado pelos governos destes países). Os defensores do retorno alegam que isto ainda assim não atenderia às estipulações da Resolução 194, e que o direito a voltar às terras perdidas em 1947-49 é inalienável e indispensável enquanto parte de uma solução justa e baseada nos direitos dos povos.

Uma série de problemáticas é depreendida desta discussão inicial (“Os refugiados devem ter o direito a retornar?”), todas as quais necessitarão, no contexto de uma eventual solução, de respostas definitivas. Se sim: o retorno deve ser feito de maneira gradual? Como evitar um colapso estrutural ao assentar aproximadamente cinco milhões de pessoas num território cuja população atual é de cerca de oito milhões? Como evitar que surjam confrontos sectários? Como resolver disputas territoriais privadas? Como integrar os refugiados e a população judaica? Como será feita a transformação política em direção a um único Estado que cubra todo o território de Israel, Cisjordânia e Gaza, e como garantir que este Estado seja democrático? Se não: como compensar os refugiados e seus descendentes? Como derrubar as muralhas dos campos e garantir que aqueles se tornem jordanianos, sírios, libaneses e palestinos de pleno direito? Como levar adiante a solução de dois Estados?

A questão fundamental que o problema dos refugiados postula para o conflito Israel-Palestina (e inúmeros outros conflitos mundo afora) é: Qual é a melhor concepção a ter em vista quando pensando e trabalhando a resolução do conflito Israel-Palestina? A concepção da autonomia e independência política de cada comunidade em Estados-

Nação soberanos, com respeito às suas identidades socioculturais coletivas e a seu desenvolvimento endógeno? Ou a concepção de integração e assimilação social e política das comunidades em um único Estado binacional, por mais distante e impraticável que isso pareça? E seria possível uma via média entre estas duas visões?

A X Semana do Apartheid Israelense

Na semana entre os dias 24 e 28 de Março ocorreu a 10ª edição da “Semana do Apartheid Israelense” no Brasil, organizada pela Frente Palestina da USP, da qual fazem parte muitos de meus colegas de minha viagem de Janeiro com a Faculty For Israeli-Palestinian Peace (FFIPP). A Semana contou com diversos eventos para a exposição e o debate da Questão Palestina, nos campi da Cidade Universitária da USP, PUC-Perdizes e FMU-Liberdade. Foi interessante e positivo ver engajados em discussão – e, com frequência, em embate –, colegas de curso os quais nunca tinha visto se manifestar a respeito da questão, amigos da comunidade judaica que compareceram para expressar um contraponto sionista ao que viam como um discurso unilateral e parcial, e colegas da FFIPP.

apartheid_israelense_0O primeiro evento foi uma mesa na própria PUC, com o polêmico título “Do apartheid sul-africano ao israelense”.  Na mesa estava um dos meus coordenadores da FFIPP, o jornalista e historiador Arturo Pacheco, acompanhado de ativistas sul-africanos pró-Palestina, um dos quais havia sido um prisioneiro político durante o regime do apartheid, para traçar um panorama histórico da ideologia sionista, seu desenvolvimento até os dias de hoje, e seus paralelos com a segregação na África do Sul. Compareceram alguns amigos meus da comunidade judaica, pretendendo realizar Hasbará, isto é, ‘defender’ Israel contra o que viam como acusações caluniosas. Um de meus amigos foi o mais combativo em suas perguntas, e quando se declarou como “judeu e sionista”, foi recebido com os gritos de uma mulher da plateia – Sara as-Suri, uma palestina nascida na Síria, refugiada da Guerra Civil: “Este não é um espaço de debate, este é um espaço de solidariedade ao povo palestino!”. Outras duas pessoas na plateia, conhecidas por seu ativismo pela causa palestina, o rechaçaram igualmente.

Na 4ª Feira, ocorreu em um auditório da FFLCH a mesa “Direitos Humanos na Copa da FIFA e o apartheid israelense”, contando com Marina Mattar, do Comitê Popular da Copa, e a ativista italiana Maren Mantovani, da organização Stop the Wall. Maren defendeu a campanha internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel, emulando a mesma tática que foi usada pela comunidade internacional contra a África do Sul segregacionista, e disse que seus recentes sucessos são refletidos pela preocupação das lideranças sionistas. No entanto, Israel teria um ‘plano B’ nos países do Sul Global, cuja prioridade seria a tecnologia bélico-militar de Israel e sua hidrologia, no lugar de preocupações humanitárias. Maren apontou para a cooperação de Israel com a repressão da Polícia Militar aos protestos contra a Copa.

fotoNa 5ª Feira ocorreu a oficina “A ocupação israelense da Cisjordânia”, ministrada pelos próprios membros da Frente Palestina, a maioria dos quais colegas de viagem, e que explicou muitos dos aspectos técnicos da ocupação ilegal, como a divisão da Cisjordânia entre as áreas A, B e C, os checkpoints espalhados ao longo do muro e no interior do território, e o regime de “dois povos, duas leis” vigente nas áreas B e C, que submete colonos israelenses à lei civil (como se vivessem na Israel de jure) e palestinos à lei militar, inclusive detalhando o sistema de detenção administrativa, que permite às autoridades israelenses deter qualquer palestino com base em “evidências sigilosas” sem direito ao contato exterior por 90 dias, por 6 meses indefinidamente renováveis. Alexandre Quintino, um dos membros da Frente, contou de sua experiência estagiando na aldeia de Yanoun, no norte da Cisjordânia, assediada pelo avanço de assentamentos religiosos e nacionalistas como o de Itamar. Adriana Tavares comentou a questão da água na Palestina, e sua distribuição desigual manejada pela empresa israelense Mekorot.

Neste dia, reencontrei o prof. Samuel Feldberg, professor de Relações Internacionais da USP e Rio Branco, quem, em uma de suas palestras no Renascença, foi uma das pessoas que me inspirou a fazer RI. Depois da oficina, o professor conversou com os membros da Frente, e expressou concordância em muitos pontos, revelando inclusive ter visitado os Territórios Ocupados com organizações israelenses como Shovrim Shtikah (Breaking the Silence) e B’Tselem. Foi interessante ver como o professor e os membros da Frente discutiam as questões e o futuro do conflito de forma ponderada e objetiva.

Na sexta, último dia da Semana do Apartheid, foi discutida a situação dos refugiados palestinos em meio à Guerra Civil Síria. A palestra foi aberta pela mesma mulher que se exaltou na mesa de segunda, Sara as-Suri, que abriu com a frase “Uma vida que se define apenas como antítese à morte não é vida”. Sara descreveu o horror sob o qual vivem os refugiados palestinos do campo de Yarmouk, em Damasco, e disse que a luta dos sírios contra Assad é análoga e irmã da luta dos palestinos contra Israel. Mas sua frase que mais impressionou a plateia foi que “Após libertarmos a minha Damasco natal, eu mesma sairei daqui de São Paulo, empunharei uma Kalashnikov e libertarei Jerusalém”. Rafael V. Levy, que estagiou com a FFIPP no campo de refugiados de Aida, em Belém, explicou a atual situação do campo, que está sendo vítima de incursões e bombas de gás lacrimogêneo do Tzahal. Manuel da Furriela, da Comissão de Refugiados da OAB, comentou sobre as especificidades jurídicas da condição do refugiado.

No geral, sinto que a Semana do Apartheid foi a minha primeira experiência desde minha volta de Israel-Palestina em um debate engajado e, em certo grau, aparelhado em ambos os lados. Foi defendido que o evento é abertamente posicionado politicamente e não é neutro nem se pretende assim. Opiniões de Hasbará por parte da plateia logo sempre são esperadas, uma vez que estas de fato não são expressas pela mesa. Porém os próprios organizadores da Semana não esperavam um nível tal de exaltação de alguns setores da plateia e da mesa, especialmente entre os que associam sua militância pró-palestina com sua filiação partidária.

Ideologicamente, as palestras não me representaram uma grande transformação, não ouvi lá nenhuma informação relevante que já não tivesse visto durante minha viagem. Sim, o uso do termo “apartheid” para descrever o Estado de Israel continua a me incomodar – e nem poderia deixar de ser, referindo-se a um país ao qual fui, em toda minha educação judaico-sionista, ensinado a amar e reverenciar. Mas também aprendi, vendo amigos meus dos tempos da escola discutindo com colegas de viagem, que se referir a Israel como uma “democracia” me deixa igualmente desconfortável.

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