Fabio Zuker

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Formado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH- USP). Atualmente é mestrando em Artes e Linguagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e gestor cultural na área de arte contemporânea.

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Sim, Lula! O holocausto merece ser nosso maior referencial político!

O jornalista Otávio Dias, editor-chefe do Brasil Post, publicou no último dia 22 um texto estarrecedor intitulado Basta, Lula! Não se invoca o holocausto em vão (clique aqui para lê-lo), contra a menção de Lula ao Holocausto em meio aos debates eleitorais. Esse texto foi amplamente veiculado nas redes sociais por meio da Federação Israelita de São Paulo que, em nota, apresenta o seu descontentamento com a fala de Lula: “Sempre lamentamos quando alguém associa os crimes cometidos durante o nazismo a algum fato do cotidiano como uma campanha eleitoral”, nas palavras do seu assessor de imprensa Ricardo Berkienztat.

O jornalista Otávio Dias, bem como o assessor de imprensa da Federação Israelita de São Paulo Ricardo Berkienztat valem-se da menção ao nazismo para descreditar o ex-presidente Lula, como se este estivesse acusando de maneira indevida os seus opositores.

Afirmo, sem o menor receio, que tanto o jornalista Otávio Dias quanto a assessoria de imprensa da Federação Israelista de São Paulo têm uma visão antiquada e essencialista do que foi o nazismo na história da humanidade, e reitero a necessidade de se fazer referência a ele em toda e qualquer reflexão sobre o momento em que vivemos. Como nos demonstra parte da filosofia social do século XX (Hannah Arendt, Theodor Adorno, Giorgio Agamben, Didi-Huberman entre outros – a maior parte deles judeus), o nazismo não se trata de uma exceção, mas uma possibilidade, uma potencialidade inerente à política. Enquanto tal, deve ser mencionado, debatido e refletido, como única forma de ser evitado.

Mas afinal, o que mesmo disse Lula?

As frases fazem parte de um mesmo discurso, mas uma leitura minimamente atenciosa nos permite ver que o ex-presidente não comparou os tucanos aos nazistas. Lula compara, sim, o passado de Dilma e de Aécio Neves: “Onde estava o candidato, quando essa moça, aos 20 anos, estava colocando a vida em risco na luta pela liberdade desse País? Estava aprendendo a ser grosseiro, a ser mal-educado? ”. Pessoalmente, não acho um bom argumento, pois não me interesso por esse tipo de genealogia. Não sei como foi a adolescência das pessoas que admiro, mas me interesso muito pelo que elas estão pensando e propondo agora.

De todos os modos, Lula, que discursava no interior de Pernambuco, segue sua fala e faz, momentos depois, uma menção ao preconceito existente no país contra os nordestinos: ”Se o Nordeste ouviu, se o Nordeste leu o preconceito contra nós, as injustiças”. Ainda, segue: “Parece que estão agredindo a gente como os nazistas [agrediam] no tempo da Segunda Guerra”.

O jornalista Otávio Dias afirma que Lula ”manteve a estratégia de opor o povo nordestino aos tucanos”. Mas o ex-presidente não relaciona o verbo agredir com o partido tucano. ”Estão nos agredindo”, afirma Lula, de modo geral! E alguém em sã consciência nesse país teria a coragem de dizer que os nordestinos não estão sendo agredidos? Que não existe um preconceito contra essa região do país, afirmando que aqueles que recebem o Bolsa Família não deveriam votar, ou que no Nordeste só votam no PT porque são analfabetos?

Lula segue seu discurso, dessa vez sim, voltando ao PSDB, e afirmando o seu desejo de destruir a imagem do governo Dilma. Mas não vincula, em nenhum momento, o PSDB ao ódio que existe no país a respeito dos nordestinos.

Não obstante, detenhamo-nos alguns momentos no que diz o jornalista Otávio Dias a respeito da preocupação de Lula sobre o preconceito existente contra os nordestinos. Mencionando com uma forte carga emotiva a viagem que fez, quando tinha 25 anos, aos campos de concentração na Polônia, afirma: ”Naquela viagem, aprendi de uma vez por todas que não se brinca com um crime de proporções tão gigantescas como o praticado pelo regime nazista durante o Holocausto”.

Para o jornalista, Lula está brincando, ao mencionar o preconceito existente no Brasil contra os nordestinos. Para mim, aponta a uma realidade preocupante, diante da qual não podemos permanecer calados. Basta ver as menções constantes contra nordestinos na internet, bem como a existência de grupos neonazistas que promovem o assassinato de gays, ciganos, negros, nordestinos e judeus… No Brasil.

Por que não mencionar o Holocausto?

Essa parece ser a pergunta chave: por que não mencionar o Holocausto? O que existe por traz das reticências da Federação Israelita bem como de Otávio Dias é entender o holocausto como uma exceção à história, que não podemos compreender e cuja singularidade não permite ser invocado em nenhuma outra situação.

Essa aura ao redor dos campos de concentração foi tratada em diversos livros, entre os quais ressalto O que resta de Auschwitz, do italiano Giorgio Agamben, e Imagens apesar de tudo, do francês Georges Didi-Huberman. Em primeiro lugar, rechassemos a própria palavra holocausto, que quer dizer o sacrifício de alguém em nome de algo. Os judeus não foram mortos para expiar nenhum pecado, mas pelas mãos de outros homens, com intenções claras e que souberam arquitetar do modo mais perverso possível as máquinas de morte. Doravante, utilizemos o vacábulo Shoá, que quer dizer tragédia. Infelizmente, a áurea religiosa ao redor do holocausto se faz presente no título do jornalista Otávio Dias, ao jogar com o mandamento não mencionarás o nome de Deus em vão.

Em segundo lugar, os campos de concentração, como bem nos mostra Hannah Arendt, foram projetados para que ninguém acreditasse em sua existência. Eram inimagináveis. Entretanto, foram imaginados, projetados e colocados em prática. Não podemos cair na armadilha de considerá-los inimagináveis. São produtos humanos e de certa sociedade, com certa concepção de poder, partes de nossa cultura como o são as pirâmides para a cultura egípcia, como afirma o intelectual francês Georges Bataille.

O nazismo e a Shoá têm, sim, suas singularidades, o que não quer dizer que não comparta pontos com outros eventos trágicos na história da humanidade. Foi a única vez que uma organização estatal se estruturou sistematicamente para o extermínio de uma população específica. Mas o extermínio mais ou menos sistemático de populações, mais ou menos estruturalmente promovidos por Estados, dentro de jogos econômicos e de poder, não é exclusividade do nazismo.

Para aqueles que não tenham interesse em ler os livros de filosofia política e social a partir da Shoá,recomendo que assistam ao brilhante documentário de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição (disponível online aqui). Nele, se torna claro como o nazismo analisa o seu entorno a partir do conceito de decadência do mundo moderno e se propõe a regenerá-lo. Peter Cohen defende que os nazistas entendiam sua tarefa como um processo estético, de embelezamento, que incluía uma teoria específica sobre a nova cultura a ser forjada e os degenerados a serem exterminados: pessoas com deficiências físicas e motoras, judeus, esquerdistas, ciganos e gays.

A Federação Israelita desrespeita a memória da Shoá

A Federação Israelita, pelo passado daqueles que representa, tem o dever de divulgar uma nota rechaçando qualquer comentário racista e preconceituoso existente no país. E não criar relações em um discurso que não existe (repito, Lula nunca afirmou que a oposição seria nazista), para entrar em um jogo político menor.

É justamente pelo tamanho das tragédias que ocorreram nos campos de concentração que necessitamos dar uma resposta radical a qualquer elemento que se assemelhe a isso. Não, o Brasil obviamente não está em vias de instaurar campos de concentração contra nordestinos e homossexuais (assim esperamos!), o que não retira nosso dever em combater qualquer mensagem de ódio a quem quer que seja, por sua cor de pele, religião, etnia ou orientação sexual.

Mas existem elementos mais perversos nesse debate a respeito da memória da Shoá. A reportagem de Otávio Dias tem uma finalidade muito específica, de difamar o ex-presidente. O partidarismo do jornalista se torna claro nessa frase: “Ao fazer declarações irresponsáveis como as feitas nesta terça diante de milhares de pessoas em Pernambuco, Lula desrespeita não somente os milhões de mortos e aqueles que sobreviveram ao genocídio nazista como a todos os brasileiros que, exercendo seu livre direito ao voto, preferem apoiar a oposição nestas eleições. E, segundo as pesquisas de opinião, eles são quase 50% dos eleitores”.

A Federação Israelita, órgão supostamente neutro e de defesa da comunidade judaica ante a sociedade em general e ao Estado brasileiro, também parece entrar dentro desse jogo político menor, desrespeitando ela sim a memória da Shoá, divulgando um artigo partidário como o do jornalista Otávio Dias e gerando comentários extremamente classistas em sua página no Facebook, vinculando um antipetismo cego, como: ”O Brasil elege um operário, sem estudo, sem escrúpulo, semianalfabeto… Dá nisso! Espero que nós judeus nos unamos em campanha para tirar o PT do comando deste País”.

De modo muito claro: 1) Lula nunca afirmou que tucanos sejam similares a nazistas; 2) o nazismo deve ser pensado como uma degeneração que pode surgir da política, e não uma exceção; 3) quem faz mau uso da memória da Shoá é a Federação Israelita e o jornalista Otávio Dias, deliberadamente, para favorecer um partido específico.

Como judeu, de esquerda, avesso a quaisquer tipos de nacionalismos, e que trabalha no campo da arte, elementos que fariam de mim algo como um alvo ideal aos olhos de um nazista – tal como foram meus familiares e seus próximos –, concluo, afirmando a necessidade de se entender sistemicamente o holocausto como o momento mais sangrento e trágico de um processo histórico maior de instauração da modernidade e do capitalismo. Uma política de extermínio que soube unir o ódio mais bestial ao diferente identificado como degenerado nas figuras dos judeus, dos homossexuais e dos ciganos, para defender uma ideia de nação, uma saída à crise econômica e uma resposta contundente ao que consideravam o bolchevismo.

O nazismo deve ser visto, como nos mostram os mais interessantes autores de filosofia social e política, como uma possibilidade inerente de degeneração de todo processo político, uma potencialidade deste, e não sua exceção. Como tal, deve ser mencionado e relembrado, para que nunca mais se repita, onde quer que seja, e com quer que seja. Como afirmou, em justos termos, o presidente Lula, quando de sua visita ao Museu do Holocausto (Yad Vashem), em Jerusalém: “Todos os que querem dirigir uma nação deveriam visitar o Museu do Holocausto para saber o que pode acontecer quando a irracionalidade toma conta do ser humano”.

PS: Aos que tiverem interesse em ler minhas críticas ao PT, recomendo o artigo que escrevi sobre o antipetismo, em que aponto para problemas estruturais na política do governo Dilma, aqui.

Texto publicado originalmente no blog Gusmão.

Políticas da vizinhança: Israel e Palestina

O ano de 2014 tinha tudo para ser único na história dos conflitos mundiais, não fosse o conflito israelo-palestino. Apenas cem anos após o início da Primeira Guerra Mundial, e cerca de setenta após o término da Segunda, França e Alemanha celebram juntas o ano da amizade franco-alemã. Dois países que confundem as suas histórias nacionais com a história militar, celebram uma convivência pacífica e sem quaisquer tipos de incidentes armados ou revanchismos – fato impensável há setenta anos, diante daquilo que alguns historiadores defendem como sendo uma única guerra que se inicia com as guerras franco-prussianas e se estende até o final da Segunda Guerra Mundial.
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Neste contexto de rememorar a paz, no entanto, o conflito entre Israel e Palestina chama atenção por sua brutalidade e assimetria.
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Tenho certeza de que meus comentários não agradarão a todos. Na realidade, tenho a impressão de que eles não agradarão a ninguém. A ideia que defendo como única solução viável para o conflito, a necessidade de se pensar para além de Estados nacionais, traz algo de incômodo para ambos os lados. Aqueles que acreditam no sionismo me acusarão de estar defendendo uma sentença de morte contra mim mesmo, uma vez que parte da mitologia fundacional do Estado de Israel se baseia no pressuposto de que todos os judeus no mundo estão em perigo e apenas um Estado nacional poderá salvaguardar a sua proteção – pressuposto esse que era amplamente defendido após o extermínio dos judeus da Europa, mas que merece ser repensado atualmente. Já aqueles que criticam Israel de maneira cega, muitas vezes ignorando a origem da imigração judaica no genocídio perpetrado pelos europeus e misturando cultura judaica com a nação israelense, me acusarão de praticar uma crítica não radical o bastante contra o projeto sionista e o lobby judaico mundial – este último tema, para mim, resquício de um antissemitismo medieval que foi reavivado na sua versão moderna pelo nazismo.
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Meu interesse vai além de discutir os recentes acontecimentos políticos e militares, a ofensiva de Israel na Faixa de Gaza e os foguetes lançados pelo Hamas contra o território israelense. Quero refletir sobre uma lógica de agressividade que subsiste como pressuposto ao conflito, e que pode nos ajudar a entender um pouco dos últimos acontecimentos: os usos políticos que são feitos de diferenças culturais por Estados nacionais, transformando vizinhos em diferentes, e daí na encarnação do mal, a ser eliminado.
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O Velho Continente afogado em velhas ideias

Diante da ascensão da extrema direita em países centrais como França e Inglaterra, do sentimento de eurofobia e de xenobia promovido por movimentos nacionalistas, e inclusive da vitória de pequenos partidos neonazistas, as eleições para o Parlamento Europeu parecem mostrar uma mudança que há muito se anunciava na política europeia.

Vivi na Europa durante dois períodos diferentes. Na realidade, vivi um ano na França, entre fevereiro de 2011 e fevereiro de 2012, enquanto fazia um intercâmbio pela USP, e estou novamente vivendo por aqui, fazendo um mestrado em Paris desde setembro de 2013. Certamente, as minhas impressões da vida no Velho Continente mudaram substancialmente desde a primeira vez que pisei aqui, há mais ou menos três anos e meio. Mudou a minha posição social: de estudante de graduação com uma bolsa da universidade e auxílio moradia do governo para um estudante de mestrado sem bolsa, trabalhando a noite em bares. Mas acredito que mudou também a percepção social e política de jovens europeus, nos últimos três anos, diante da ascensão da direita e da ausência de perspectivas futuras, que se resume na frase tantas vezes proferida: ”minha vida não será melhor do que a da geração de meus pais”.

Minha análise do resultado dessas eleições europeias se concentra sobretudo no caso da França, com algumas pitadas sobre os contrastes e semelhanças com a Itália, países em que vivi por mais tempo, e de onde a maior parte dos amigos com os quais travei relações são provenientes – em ambas vezes que por aqui estive.

Talvez a melhor frase que encontrei, capaz de condensar as tensões vivenciadas na França, hoje tenha sido pronunciada por um amigo francês, cuja família é originária de outros países e que trabalha em uma instituição financeira em Londres: ”Tem um ambiente de fim de império, decadência. E também eu sinto como se eu fosse parte de um mundo que não existe mais. Por minhas origens e pelos valores cosmopolitas que tenho. E pra mim, a França é um caso grave, mas podia se fazer uma observação mais geral de toda Europa”.

 

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Para aqueles que ainda acreditavam que nacionalismos e questões étnicas eram problemas ultrapassados, próprios ao século XX, esse último domingo 25 representou um verdadeiro tapa na cara: a Europa viu, atônita, a ascensão de partidos neofascistas como o UKIP britânico e o Front Nationale fancês. Partidos nacionalistas de direita também receberam muitos votos em quase todos os países, e os neonazistas Auba Dourada grega e o Jobbik húngaro obtiveram, respectivamente, dois e três deputados no Parlamento Europeu. Em suma, são 20% das cadeiras do Parlamento Europeu que encontram-se repartidas entre deputados de extrema-direita, prevalecendo entre eles uma tendência generalizada de eurofobia (daqueles que veem com reticência o projeto de unificação europeia) e, de modo nada contraditório, de xenofobia (daqueles que querem impor leis anti-imigração).

Na Itália, porém, um cenário muito diverso, em que o atual governo de transição, cuja maioria é do Partido Democrático, a centro-esquerda de Matteo Renzi (equivalente ao Partido Socialista francês, do presidente François Hollande), obteve também a grande maioria dos votos (41%), e o popular Beppe Grillo, que se diz para além da esquerda e da direita e propõe uma cruzada contra a corrupção em seu país, obteve 21%. Apesar de ser considerado como inclassificável no espectro político, disse a a senadores de seu partido que pretendiam suprimir o delito de ”imigração ilegal” : ”Quantos imigrantes podemos acolher se um italiano a cada oito não tem meios para comer?”, . A Itália também viu serem eleitos membros do partido separatista de extrema-direita Lega Nord, entre eles verdadeiras aberrações como Borghezio, famoso por declarações antissemitas e por ter afirmado que as forças armadas italianas deveriam atirar para afundar os navios de imigrantes que chegavam a sua costa.

Vale também mencionar que na Espanha e em Portugal, países muito castigados pela crise e cujo governo são formados por uma ampla maioria de direita, foram eleitos mais parlamentares de esquerda do que de direita.

”Unidos os franceses são invencíveis”/

Com este logo, o Front National, partido neofascista, chega à liderança da representação francesa no Parlamento Europeu. Que possíveis interpretações podem ser feitas de um partido que se elege com a grande maioria dos votos nacionais (com 25% do total de votantes) promovendo a saída da França da União Européia e da Zona Euro?

A resposta a essa pergunta, que talvez sirva de atalho para pensar o que acontece na França hoje, implica numa dupla análise: por um lado, as mudanças ocorridas dentro do próprio Front National. De outro, a desconfiança generalizada da população diante da possibilidade da centro-esquerda, representada no cenário político francês pela frágil figura do presidente François Hollande, propor uma solução factível ao problema da crise econômica.

Em primeiro lugar, Marine Le Pen não é Jean-Marie Le Pen. Filha e pai compartilham crenças nacionalistas, como a maior autonomia da França diante da União Européia, a restrição imigração, entre outros temas cuja solução proposta sempre vem de um ponto de vista conservador. Se Jean-Marie assustava os eleitores com um discurso radical, abertamente fascista e antissemita (foi condenado diversas vezes a pagar indenizações por suas declarações antissemita e chegou a afirmar,quando detinha um mandato de deputado no Parlamento Europeu, que as câmaras de gás eram apenas um pequeno detalhe na história da Segunda Guerra Mundial), sua filha, Marine, defende causas conservadoras embora faça de tudo para se desvincular da postura agressiva. Nesse ano de 2014, por exemplo, Marine entrou em um processo legal de difamação contra Jean Luc Melenchon, presidente do Front de Gauche, por havê-la chamado de fascista.

Sem nenhuma dúvida, a imagem mais palatável de Marine é um atrativo para eleitores que antes nunca pensaram em votar no Front National, como por exemplo imigrantes que obtiveram a cidadania francesa e que veem os postos de trabalho que possuem ameaçados pela nova onda de imigrações ilegais. Mas esse fenômeno de mascarar o radicalismo de direita do partido não é em nada consistente: tão logo foram eleitos prefeitos do Front National, anunciaram que nas escolas municipais sob a jurisdição do partido a única carne a ser preparada na cantina seria a de porco, excluindo crianças judias e muçulmanas do refeitório – tal decisão administrativa em nada se difere das Leis de Nuremberg, no que diz respeito à intervenção corporal por parte da administração estatal com finalidades de excluir um grupo religioso.

A cruzada nacionalista de Le Pen, sob a égide do discurso ”unidos os franceses são invencíveis”, obteve resultados inéditos e assustadores. Mas nem todos os partidos políticos de direita estão preocupados na esterilização da sua imagem, como os neonazistas gregos e húngaros. Essa heterogeneidade da nova direita europeia em ascensão é também um impeditivo para as possíveis alianças. O UKIP britânico e a direita nórdica receiam uma aliança com o Front National, devido à imagem racista e antissemita cultivada por anos pelo partido. Por outro lado, o próprio Front National se recusa a fazer alianças com os neonazistas, visto que quer se distanciar dessa imagem.

Entretanto, essa é apenas parte da hipótese: as mudanças nas expectativas gerais da população francesa com relação a seu futuro parecem ter criado todo o ambiente para a ascensão do Front National; apenas a pedra de toque de uma situação muito mais enraizada na história do que se imagina.

As cruzadas moralizantes/

Enquanto fazia meu mestrado em Paris, os últimos três domingos seguidos em que estava na cidade foram marcados por grandes manifestações de direita: contra a aprovação do casamento gay, contra aquilo que no debate nacional ficou estupidamente marcado pelo nome de ”teoria do gênero”, a favor da revogação da lei do aborto, entre outras pautas conservadora. Uma verdadeira cruzada moral, organizada e reinvindicada sobretudo por jovens, e que abriam espaço para todos os tipos de manifestações antissemitas, anti-imigrantes e antiesquerda.

Foi na semana imediatamente posterior a essa série de manifestações que moviam a cidade toda, que terminei minhas matérias obrigatórias e resolvi ir embora: o clima de tensão era muito pesado, e a sensação de que se estava afundando, de que se adentrava cada vez mais em uma espécie de beco sem saída, era muito angustiante.

De um certo modo, a frase pronunciada pelo meu amigo continha algo daquilo que eu sentia. Se a França havia conseguido criar o mito para si mesma de um Império, de uma potência mundial sobretudo no campo cultural, a sua decadência no plano econômico significa também o desaparecimento daqueles que sempre se opuseram de maneira radical a esse projeto. A impressão hoje é diametralmente oposta daquela do início do século passado: a Paris que atraia intelectuais e artistas devido ao ambiente rico em ideias liberais deixou espaço para uma França retrógrada, em que qualquer medida de atualização de legislação vem acompanhada de uma reação violenta daqueles que sentem ter perdido algo definitivamente.

Um país que se confronta hoje com as realidades que subsistiam à ilusão que criara de si e para si. Historicamente, a França nunca reconheceu a existência de um governo fascista como o de Pétain, e muito pouco se fala da colaboração. O espaço público faz questão de assegurar o lugar de De Gaulle (um general que sequer participou do Dia D e manteve sua esfera de poder por duas décadas) e dos mártires e vítimas, esquecendo-se dos colaboradores e tratando o nazismo como um problema exclusivo do invasor alemão. A capacidade de mascarar erros históricos está, na minha opinião, na origem da sensação de desespero que se vive no país: é evidente o descompasso de um passado construído apenas a partir de adjetivos qualificativos chocando-se com o desespero de um presente e futuro que se veem perdidos. Quanto maior a imagem do passado que se cria, maior a vertigem diante da queda.

A ineficácia das propostas políticas, e falta de entusiasmo e expectativa da população com relação a possíveis mudanças é também um traço em nada negligenciável. A sensação que tenho é a de uma fotografia que por muito tempo manteve-se em vigor, e que começa a destroçar-se de modo irremediável. Diante dessa queda, diversas linhas políticas do século XX tentam rejuntar os pedaços desse quebra-cabeças, tentando recompô-lo, sem espaço para nenhuma nova composição. Essa, talvez seja uma imagem que tem pontos que podem ser expandidos para outros países da Europa Central e Ocidental: a socialdemocracia (os chamados partidos de centroesquerda) tentam lutar pelo reestabelecimento do Estado de bem estar social, colocado em cheque desde os anos 80 (Reagan e Thatcher); a centrodireita (ou neoliberais), continuam defendendo o modelo de reformas imposto desde a década de 80, em que a redução da intervenção estatal se reatualiza diante a pretensa necessidade da política de austeridade; extremadireita e extremaesquerda reencenam conflitos ideológicos tradicionais do pré-Segunda Guerra Mundial.

Nesse cenário parecem existir poucas ideias novas, pouco espaço para uma política que fuja das mesmas cartas marcadas permanecem em jogo há pelo menos 30. A figura de Melenchon,do Front de Gauche parece-me ainda a mais atraente, pelo menos do ponto de vista da coerência de suas posições e declarações – vale sempre deixar claro.

A chamada centroesquerda (o Partido Socialista do presidente Hollande) tem ganhado antipatia crescente da população, diante de medidas de inovação tímidas (como a ampliação da categoria de família, a implementação de cartilhas de orientação sexual que fujam do modelo heteronormativo e a dinamização da economia), mas que recuam diante dos menores protestos.

O único outro partido que apresenta uma proposta coerente entre os termos que propõe é o Front National e daí o seu apelo e perigo. Centrado em um conservadorismo exacerbado, ganha peso na representação a nível europeu, e junto com o UKIP britânico são os mais assustadores, por promoverem um tipo de nacionalismo e chauvinismo que há muito se imaginou extirpado do continente.

Angela Merkel disse, em determinado momento, quando rebatia críticas céticas ao processo de ”modernização” neoliberal proposto por ela, que essas eram questões pertinentes na velha Europa, e que hoje estaríamos diante da nova Europa. Ao contrário do que preconizou a premiê alemã, velhas ideias continuam protelando o antigo.

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Texto publicado originalmente no blog Gusmão.

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