Para uma semana após o protesto na Dizengoff, em Tel Aviv, marcou-se uma visita ao campo de refugiados de Holot. Enquanto um ônibus partia do parque Levinsky, em frente à Estação Central de ônibus de Tel Aviv, alguns outros carros – uma centena, aproximadamente – partiam das diversas cidades de Israel em direção ao deserto do Neguev. Às dez da manhã eu encontraria Yael na conhecida “Praça dos Gatos” (Kikar haHatulim) e seguiríamos em um carro cheio a Holot. Desde a Givat haTsarfatit, região nordeste de Jerusalém, para além da linha verde do armistício de 1949, até a região central da cidade são cinquenta minutos de caminhada. Talvez quarenta se eu me atrevesse a cruzar o bairro ultra-ortodoxo de Mea Shearim em pleno shabbat com meus trajes não exatamente modestos. Não vejo nenhuma vantagem em ofender. Prefiro meus dez minutos a mais observando o movimento típico do shabbat: poucos carros, crianças brincando na rua, os passarinhos em suas atividades matinais – e os corvos! Como eu amo os corvos! No caminho entre a universidade e o alojamento sempre passo pelo Cemitério Britânico, e inevitavelmente paro um minuto para ouvir os corvos de Jerusalém. E, quando se apressam em sair de perto de mim, correm a pulinhos desengonçados até que juntam forças para alçar voo… – O shabbat em Jerusalém é muito complexo, como tudo por aqui. Naquele sábado, passei pela haNeviim, para mim a rua que é um microcosmos da cidade (santa?): começa no Portão de Damasco, entrada ao bairro árabe muçulmano da Cidade Velha, e segue até a praça Kol Israel Chaverim, nome hebraico da Alliance Israélite Universelle, passando por algumas igrejas e organizações cristãs das mais diversas origens – etíopes, francesas, russas – e, claro, paralela ao bairro ortodoxo. “Shabbes! Shabbes! Shabbes!”. Os carros que passam pela haNeviim aos sábados já sabem que um grupo de ortodoxos está a postos para lembrá-los de que oras! É shabbat!
Por fim, como combinado, cheguei à Praça dos Gatos. Éramos cinco – três israelenses, um canadense e eu. E um porta-malas carregado de injera, comida típica etíope e eritreia, que havia sobrado de uma festa temática organizada na quinta-feira em apoio às comunidades de africanos em Jerusalém. Começamos nossa viagem de duas horas e meia. “Faz parte disso tudo. Quanto mais longe das cidades, melhor.”, comentou ironicamente Yael, membro de um grupo recém-organizado como uma ONG chamado Jerusalem African Community Center. No percurso, enquanto, passando por vilarejos de tendas beduínas, adentrávamos o deserto do Neguev, ela, que já conhece a situação dos refugiados de perto e já havia estado diversas vezes em Holot nos últimos tempos, explicava-nos detalhes. No momento os “hóspedes” – a palavra usada é dayarim, que não é exatamente hóspede, mas tampouco expressa a situação real dos refugiados – estão sem aquecimento. Muitos insistem, principalmente quando se fala sobre Gaza, que o inverno esse ano não é dos mais rigorosos, e é verdade: na região sul, as temperaturas chegaram apenas a 0ºC. E tem a questão das emendas da lei. Em setembro a Suprema Corte decidiu, pela segunda vez, que a existência de Holot é inconstitucional. E pela quinta vez, em vez de acatar as decisões da Justiça e fechar o centro de refugiados, o governo israelense criou uma nova emenda. Agora os “hóspedes” precisam assinar o ponto apenas uma vez por dia em vez de três vezes ao dia. Além disso, o tempo máximo de detenção foi delimitado: vinte meses. E as organizações se perguntam – e ainda não obtiveram resposta alguma – sobre o destino dos refugiados depois desses vinte meses. Ninguém sabe. A lei não menciona. O campo existe desde dezembro de 2013, um ano e um mês. Nenhum detento chegou aos vinte meses.
Chegamos a Holot. Um campo cercado, protegido por arame farpado. À entrada, Sherut Batei haSoher – Merkaz Sihiyah Holot (algo como “Serviço Penitenciário – Centro de Estadia Holot”). Uma ironia. O contraste entre “Centro de Estadia” e “Serviço Penitenciário” é gritante. Talvez não para os hóspedes. Eu tento tomar cuidado ao reproduzir a história de vida do outro – corro o risco de facilitar o trabalho do inimigo. Reproduzir a fala de cada um como paradigmática me parece uma forma de desumanizá-los, continuando o trabalho daqueles que os detiveram. Ouvimos eritreios e sudaneses. A política do governo é deter os homens solteiros, jovens e sem problemas de saúde que cruzaram a fronteira antes de 2009 e 2008 (as ondas de refugiados sudanesa e eritreia não tiveram início ao mesmo tempo). A maior parte deles já está há cerca de seis ou sete anos em Israel. Já falam hebraico e já estavam praticamente integrados, dentro do que é possível para um “imigrante ilegal”, à sociedade israelense. As histórias são muito diversas. Entre os refugiados há, em geral, apenas dois pontos em comum: o perigo que corriam – e ainda correm, caso cedam às pressões da política do governo e decidam retornar – em seu país natal e a “casa” no meio do deserto do Neguev que compartilham. Sequer as línguas são as mesmas. “No Sudão, há cerca de quinhentas línguas distintas. Menos na escrita. É tudo escrito em árabe.”. Nos sentamos em roda e ouvimos quem quisesse falar. Um a um. Descreviam a situação de forma semelhante: quando precisam de tratamento, há um único remédio que supostamente cura tudo, “se dói a perna, o ouvido, o joelho, se tenho febre…”; a comida é sempre fria, um ovo, um pouco de arroz; e tem os aquecedores… Ou melhor: não tem os aquecedores. Por vezes ouvimos dos refugiados que eles não querem reclamar dos problemas de Holot. Eles não querem melhoras em Holot. Eles simplesmente não querem Holot. “Quando cruzei a fronteira, me disseram ‘Bem-vindo a Israel’. E, de fato, vivi bem aqui. Eu gosto muito de Israel. Até que decidiram me chamar de infiltrado, usando uma lei anti-terrorismo, e me colocar aqui.”, contou um dos refugiados para um público de israelenses ainda um pouco desnorteados. A reação mais sincera que conseguimos ter foi seguir o caminho de volta a Jerusalém em silêncio. Exceto pelo canadense, que, como todo ativista de direitos humanos de países tidos como desenvolvidos, estava cheio de análises e opiniões sobre um país e uma sociedade que ele se recusa a enxergar como complexa e multifacetada.
Para mais informações a respeito de organizações israelenses (é ridículo ter que ressaltar isso toda vez, mas é necessário enquanto ainda houver gente surda às diferentes vozes de cada sociedade) que tratam da questão dos refugiados:
March for Freedom / Jerusalem African Community Center / Kolot leHolot / Faces of Exile (Em inglês)
Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.