Era um Kabalat-Shabat inusitado. Éramos mais de cem pessoas no deserto, ao lado do Mar Morto, num treinamento de nove dias em Comunicação Não-Violenta. O rabino de barba e cabelos longos tocava violão e junto com sua esposa cantava lindas canções que todos acompanhavam dançando – judeus, palestinos, israelenses, da Cisjordânia, de Gaza, e internacionais de mais de dez países. Vindo de uma família secular, pela primeira vez desde meu Bar-Mitzvá no Kotel senti identificação com um ritual judaico que fazia sentido para mim.
Ao centro da grande sala, decorada em estilo mediterrâneo com lindos tecidos estampados nas paredes e repleta de almofadas sobre os vários tapetes que cobriam o chão, havia uma mesa baixa enfeitada com velas e flores, ao redor da qual todos dançávamos. Nossa anfitriã, musicista e dançarina, tocava um grande tambor pendurado em seus ombros, enquanto se movia. Alguns dos palestinos vieram dançar comigo por alguns instantes e não pude deixar de lembrar das histórias que ouvi sobre o período anterior aos movimentos nacionais, quando judeus e árabes na Palestina participavam das festividades e tradições uns dos outros. Neste dia, palestinos participaram da celebração judaica, e outros judeus também meditavam junto aos muçulmanos enquanto estes faziam suas orações, como se guardando seu espaço ou compartilhando deste momento espiritual.
O local que hospedou o evento foi fundado por israelenses e palestinos que decidiram criar um espaço alternativo com uma proposta radical, transcendendo os entendimentos políticos convencionais. Fica na área C da Cisjordânia, entre Jericó e o mar morto e é acessível tanto a judeus quanto a palestinos, e por isso foi escolhido.
Das atividades participaram ex-soldados israelenses, ex-combatentes palestinos, colonos judeus, e cidadãos de Gaza. Todos haviam sofrido perdas terríveis e todos tinham esperanças de encontrar alguma saída. Eu estava ali como membro da equipe de 10 instrutores, vindos dos EUA, Inglaterra, Israel e dos territórios palestinos ocupados. Os princípio da não-violência de Gandhi e Martin Luther King ganhavam forma prática em cada atividade, graças a Marshall Rosenberg, psicólogo judeu americano que desenvolveu uma abordagem chamada Comunicação Não-Violenta (CNV). Rosenberg se inspirou em Paulo Freire para fundar seu instituto nos EUA, que vem divulgando a CNV.
Entre as atividades desenvolvidas se destacavam exercícios de escuta profunda, empatia e mudança de referencial de compreensão. Palestinos puderam ouvir e compreender pela primeira vez o medo tão profundamente impregnado nos judeus desde sua infância, mesmo quando já distantes de um perigo real imediato. De um palestino ouvi que o trauma do Holocausto deve ser instransponível. Judeus puderam ouvir pela primeira vez como palestinos foram forçosamente expulsos de suas terras e as duras condições em que vivem, sem acesso a necessidades básicas, discriminação e humilhação diária baixo a ocupação militar. De uma colona judia ouvi que nenhum ser humano deveria ser sujeitado a tais condições, não importa o contexto político ou histórico. A verdade que se revelou foi a humanidade compartilhada, comum a todos, por trás dos rótulos e generalizações, preconceitos e medos, que infelizmente servem de base para os processo políticos de mobilização de massas.
Talvez seja tempo de haver uma política da não-violência que permita a todos enxergar uns nos outros a sua humanidade comum, respeitando e celebrando a diversidade sem medo, e confiando que é possível encontrar estratégias criativas para suprir as necessidades de todos.