Rafaela Barkay

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Doutoranda do Programa de Estudos Judaicos e Árabes da FFLCH-USP, tem como tema de pesquisa o diálogo entre israelenses e palestinos. Moderadora de grupos on e offline que visam a aproximaçäo entre estas duas populaçōes e o estudo crítico de questões relativas ao Oriente Médio.

Posts recentes no blog escrito por Rafaela Barkay

Afinal de contas, de que judaísmo estamos falando?

Ontem tive a oportunidade de participar de uma mesa sobre Israel como Estado judaico e democrático. O tema, que na verdade era uma pergunta, trazia em si a inquietação da busca pela própria identidade.

Como acontece nestas ocasiões, o tempo era curto, e despertou mais questionamentos que respostas, o que vem bem a calhar para um título que nos brinda com uma interrogação.

Eu parti do princípio de que se Israel é um Estado judaico, e o debate amplo e inclusivo um valor central no judaísmo, não existe a possibilidade de que não seja democrático, caso contrário, seu próprio caráter judaico estaria ameaçado.

Existe sim, um sem número de contradições internas que ameaçam esta estrutura, mas entendo que mantenham o princípio democrático enquanto fizerem parte do debate. O perigo é a cristalização, a passividade, ou ‘chas vechalila’, um estado (agora em minúscula) morno e sem vida.

O breve debate que se seguiu, deixou uma pergunta em aberto, que ficou dançando dentro de mim, e pede passagem aqui. ‘Afinal de contas, de que judaísmo estamos falando?’ Aqui vão algumas reflexões que brotaram ao dirigir, na hora do banho, ou antes de dormir. Daquelas coisas que ficam buscando seu lugar, e só podem realmente existir se forem paridas.

A tua inquietação, Rodrigo, não somente é legítima, como reflete a pulsação de todo um povo, seja em Israel ou na diáspora.

De todos, eu te diria, Rodrigo, de todos. Do mais tradicional àquele mais assimilado. Daquele que vive, come, veste, reza e respira o judaísmo a cada minuto, àquele que o nega. Se realmente queremos preservá-lo como um sistema de valores essenciais, teremos que lidar com aquele que uma vez judeu, se declare ateu, e que queira a todo custo se desvencilhar de suas raízes, até aquele que dessacraliza não somente mesquitas e igrejas, mas escolas onde estudam também, crianças judias. Mesmo que a tentação da negação, principalmente no segundo caso, seja grande, não há meios de nos livrarmos dele. Se queremos que o judaísmo seja possível, teremos que acolher e encontrar maneiras de lidar com todas as suas nuances, onde lidar não significa fazer vista grossa.

Se, por princípio, ninguém se livra de sua condição judaica – o que a história recente já nos deu provas suficientes de sua veracidade – seu oposto também é verdadeiro: o judaísmo não se livra de ninguém.

Portanto, Rodrigo, a tua pergunta traz a beleza mais profunda do judaísmo. Ser judeu é ser um em suas escolhas, e ser todos, por condição. Como povo, somos responsáveis pelo que acontece ao nosso redor. Não temos como afirmar que não nos diz respeito. Porque diz. Mas também, não cabe a ninguém nos dizer como ser judeus. Porque somos fruto do debate e da indignação, e é isto que nos mantém vivos por milênios.

Obrigada, Rodrigo, pela luz.

 

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

Coração partido, coração aberto

Hoje Manal, que vive em Bethlehem me procurou. Conversa fiada, daquelas só possíveis quando nos desvinculamos do que nos separa. Me apressei em perguntar por sua filhinha, a mais nova de quatro irmãos, que nascera durante a guerra de Gaza. “Doce! Já começou a comer!” Quando nasceu, publiquei sua foto em nosso grupo, que ficou um bom tempo em destaque, nos lembrando e lhe agradecendo por nos manter na corrente da vida. 

Os planetas devem ter feito alguma dança especial hoje, pois subitamente, depois de alguns dias tensos no grupo tentando a todo custo provar a novos membros, ainda crus, de que o diálogo era possível, eis que pela primeira vez depois da guerra os meninos e meninas de Gaza voltaram a falar. Ah, que bênção!

Uma grande amiga israelense que sinto como irmã de alma havia publicado uma chamada para um treinamento de observadores dos direitos humanos em Gaza, e logo nos organizamos para que todos nossos amigos fossem avisados. Mas eu não esperava, ninguém esperava, só não sei o quanto os outros se deram conta, de que despertaríamos fantasmas.

Mais cedo, havíamos conversado sobre o medo que toma conta dos israelenses e diante de afirmações muito precisas a respeito do que deveria ou não ser feito para combater a inércia, eu concluíra muito intimamente, que nossa atitude de acolhimento ajudaria muito mais. Talvez isto tenha me preparado para o que viria a seguir.

A menina de Gaza voltou, o garoto também. Em uma conversa privada, ela me contou que haviam se conhecido no grupo, e se tornado grandes amigos  – tomara que se casem! – festejou meu coração de mãe judia. Um menino novo, pela primeira vez falou sobre suas dores. Um a um, como que por encanto, abriram seus corações. Temerosos, quebrados, cheios de trauma e dor. Belas, lindas criaturas bonitas. 

Mais tarde, o mais velho deles, que já começa a assumir ares de homem responsável, me pediu que eu cuidasse de alertá-los para que não mencionassem suas atividades no grupo entre os seus. “Eles são livres no grupo, mas na vida real, não”. Me disse que um amigo tinha sido envenenado, mas que já estava a salvo na Malásia. O que é medo, fantasia, confusão, e o que é realidade?

Não sei. Sobre os israelenses, eu concluíra, que se o medo surge, é legítimo e deve ser acolhido, independente dos fatos. O medo de Gaza também.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

Os meninos voadores

Não escrevo desde a guerra, que Israel teima em chamar de “a operação militar do último verão”, o que me deixa com sabor de ter assistido ao filme da sala ao lado. Por trauma, medo, ou simplesmente para tirar a poeira dos ombros e tentar encontrar um mínimo de possibilidade de vida entre os escombros internos, o pessoal de Gaza silenciou-se. Todos, sem exceção, procuram encontrar alguma forma de deixar a região, ideia que tem um misto de luta incansável e sonho distante. Sinto saudades, quero abraçar todos eles, e compartilho do mesmo silêncio ensurdecedor.

Recentemente um garoto do time local de parkour, juntou-se a nós. A legenda da fotografia desses meninos voadores traz o senso de humor que não se deixa abater e que me faz sorrir: “a vida em Gaza está mesmo difícil – Israel baniu até a lei da gravidade!” A professora israelense logo se antecipa: “mas vocês não se quebram todos?” E começamos a trocar ideias de como fazer chegar até eles algum equipamento de segurança. Ironia do destino.

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Os israelenses estão apavorados. Minha amada Jerusalém transformou-se em palco de ataques terroristas, preconceito, ódio e desejo de vingança. Meu coração se apequena ao pensar naquela gente, naquela paisagem que tanto me inspira a alma. Ai, se eu me esquecer de ti…. Mais uma vez, converso com israelenses e palestinos, preocupada, atrás de notícias. A situação na Cisjordânia também não anda nada boa. “Preciso do teu abraço” – me escreve o palestino de Hebron – “ando tão triste”. E seguimos nossa jornada virtual, na certeza de que alguém se importa, em ambas as direções.

Achava graça quando pedia informações nas ruas de Israel, e sempre recebia a mesma resposta: “vá, reto, reto, até o final, até que não haja saída”. O que acontece quando não temos mais saída? As esperanças diluídas, uns poucos lutando bravamente, bonecos, cartazes e espírito de comunhão: “árabes e judeus se recusam a ser inimigos”, mas a imensa maioria se rende ao medo. Não julgo, não tenho este direito. Posso, talvez rezar, acender umas velas. Posso conversar, promover o encontro, mas não posso negar o sentimento de impotência que me invade a cada manhã quando leio as notícias. Que Deus, em Sua eterna misericórdia, se apiede de nós.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

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Depois da explosão, o silêncio ensurdecedor. Atordoados, catam o que restou das casas, dos corpos, da dor. Alguns se afastam do mundo virtual, têm a vida para respirar. Outros observam a movimentação estáticos, sem forças para reagir. Depois da catarse, o vazio. 

Uma hora antes do anúncio do cessar fogo para o início da noite, a israelense que tanto se esforçara em estabelecer sonhos com Gaza teve sua casa parcialmente danificada por um míssil. Dois amigos de sua comunidade foram enterrados nos dias que se seguiram e um terceiro ainda luta entre os dois mundos. Todos os outros anúncios de cessar fogo eram previstos para a virada da noite; este, chegou atrasado em uma hora.

A urgência toma conta de todos. No final de semana antecipado rumam para o norte, onde o ar desliza mais tranquilo entre as montanhas. As notícias de que grupos rebeldes tomaram o posto de controle na fronteira com a Síria de onde foram, em seguida, lançados alguns morteiros, parecem não ter intensidade suficiente para competir com a necessidade de silêncio.

Planos são adiados, afinal, é verão. Às vésperas da volta às aulas, as férias maculadas pelo sangue de inocentes deixará marcas profundas. Algumas ficarão expostas na face, sem possibilidade de qualquer disfarce. Outras, irão para debaixo do tapete e voltarão para nos assombrar enquanto saborearmos distraídos um café, ao som de alguma canção francesa antiga à beira-mar.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

Onde há fumaça ainda há um fio de esperança

Estava hoje na rua pela hora do almoço quando recebi um telefonema. No meio de nossa conversa a menção de que meu amigo de Gaza havia feito algum comentário no grupo a respeito dos panfletos que o exército de Israel costuma jogar de aviões sobre regiões que serão bombardeadas a fim de alertar a população civil para que evacue a área fez meu coração disparar, prevendo que ele estivesse passando por tal situação. Tentei contato por todos os meios de que dispunha, porém sem sucesso e saí em disparada para casa a fim de me conectar com mais qualidade. Felizmente tudo pareceu se tratar de um mal entendido e respirei aliviada. Deixe-lhe uma mensagem contando sobre o sufoco pelo qual passara, mas que já desfizera a confusão. “Estou enlouquecendo”, pensei.

Pouco depois ele entrou em contato comigo, confirmando a prática dos panfletos e acrescentando que na semana anterior recebera uma ligação do exército israelense no celular dizendo que eles tinham como alvo células do Hamas e alertavam a população para que não colaborassem com o grupo. “Eles querem que nos insurjamos contra o Hamas, mas sabem que não podemos fazer isto”. “É uma pessoa que telefona, ou uma gravação?”, perguntei. “Gravação.” Procurei tranquilizá-lo de que os ataques aéreos eram mais precisos do que aqueles por terra, e que ele não teria nada a temer. Percebendo seu ceticismo crescente, sugeri que mudássemos de assunto. Falamos dos sentimentos por uma garota, de sonhos de uma vida melhor, mostrei-lhe o trecho de meu último texto em que eu falava a respeito dele, ao que ele me respondeu no seu costumeiro tom bem humorado: “Uau! Desse jeito eu vou me amar!” Como sempre, lhe assegurei de que esta situação teria um fim e que ele se daria muito em breve. Não falei isto somente para ser simpática, mas por realmente acreditar que apesar dos tempos sombrios, eles não serão eternos.

Era sábado, meu dia de descanso, e tinha mais tempo para cuidar de alguns assuntos pessoais e dar mais atenção àqueles que me procuravam. Não consigo me dedicar a todos como gostaria. Recebo mensagens muito bravas daqueles que ficaram fora das minhas prioridades no momento e me percebo elencando dramas pessoais: se está em campo de batalha, envolvido com as negociações ou cuidando de milhares de pessoas, sobe para o topo da minha lista. Envolvidos com o diálogo entre as partes e questões pessoais muito urgentes vêm em seguida, para por último entrarem questões muito particulares e pontuais. Discussões teóricas, suposições ou simples exercício são desconsideradas e qualquer forma de desrespeito ou acusação infundada são sumariamente ignoradas. “Sim, estou enlouquecendo”.

Um amigo israelense me relatou que desde o início da guerra, mesmo que menos carros se arrisquem nas estradas, o número de acidentes teve um aumento de 40%. Em um grupo do facebookque  reúne moradores do sul de Israel, onde procuro somente ouvir sem me manifestar, li relatos de como as pessoas têm medo de sair de casa para qualquer compromisso, e serem pegas desprevenidas no meio do caminho pelo aviso das sirenes sem conseguir chegar a um local seguro a tempo. Nesta região, devido à proximidade com Gaza, o sistema de proteção conhecido como Domo de Ferro tem sua eficácia diminuída. Esta semana, a primeira criança israelense morreu, atingida por um estilhaço de um míssil lançado pelo Hamas. A família, casal e três filhos estava no carro quando soou a sirene, e em uma escolha extremamente difícil, optaram por que cada um dos adultos pegasse um dos menores no colo, e que o menino mais velho de quatro anos os acompanhasse correndo. Não foi rápido o suficiente. Um dos integrantes do grupo relatou que tem o costume de deixar a porta de casa aberta, para o caso de algum estranho que esteja passando na calçada em frente no momento do alerta, possa abrigar-se ali. Outro relatou que os cachorros correm para os abrigos cada vez que escutam as sirenes, o que na região se dá repetidamente durante o dia e a noite, e alguém perguntou se os demais membros também brincavam com as crianças competindo para ver quem conseguia chegar mais rápido ao abrigo. “Estamos todos enlouquecendo”.

Uma garota publicou uma mensagem angustiada no grupo. Seis mísseis haviam atingido a vizinhança de nosso amigo de Gaza. Ele teria tido tempo de em algum momento escrever-lhe uma mensagem, e alguns minutos mais tarde enviou outra, dizendo que estava vivo e recomendando que ela fosse dormir. Respiramos todos aliviados.

Pouco tempo depois notei que ele estava conectado, e lhe escrevi uma mensagem pedindo notícias, ao que ele prontamente respondeu, abrindo um abismo sob meus pés. Aos primeiros sinais de bombardeio, a família que vive apinhada em uma casa de um cômodo em um campo de refugiados, saiu correndo aos gritos, mas ele usava seus fones de ouvido e demorou uns poucos segundos para reagir. Foi o último a sair da casa que tremia e cujas janelas e telhado sofreram danos devido à explosão da pequena galeria de lojas distante cem metros dali. “Eu nunca havia visto algo assim em minha vida, o mundo ficou todo vermelho, o barulho era ensurdecedor”. Machucou um pouco o braço, e correndo em meio à fumaça e escombros, um dos olhos sofreu com a poeira. “Queima como o inferno”, disse. Extremamente deprimido e desacreditando de qualquer possibilidade de sobrevivência me implorou que eu parasse de falar qualquer palavra positiva. Sua dor era tamanha que qualquer sopro de vida lhe soava como uma heresia.

“Alerta vermelho, alerta vermelho”, publicou a israelense que vive na fronteira com Gaza. O medo, a exaustão e a incerteza marcando a nova semana que se inicia. Na manhã de domingo, enquanto tomava seu café, as sirenes soaram na região. Não houve feridos.

E na dança em que os últimos encontram seu destino, não posso me dar ao luxo de não ser a última que ainda carregue um fio de esperança. Tenho que seguir fazendo o que comecei, não posso me permitir abandoná-los. Um outro amigo, acadêmico e ativista veterano em resolução de conflitos respondeu ao meu apelo por ajuda: “em se tratando destes líderes extremistas dos dois lados, você vai ter que se acostumar ao pior.” Procuro uma brecha por onde possa passar a luz e minimamente sustentar uma esperança de vida.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

A garota de Gaza

Na madrugada anterior, a garota de Gaza escreveu uma mensagem em nosso grupo. Muito assustada, relatava o medo diante do recente ataque israelense nos arredores. “A luz, o cheiro e o som das explosões são diferentes”, dizia. Procurei acalmá-la em uma conversa privada e alertei uma amiga turca em comum e próxima a ela há mais tempo, que  aceitou minha recomendação para que lhe telefonasse assim que possível, tarefa que somente conseguiu completar muitas horas após termos perdido a conexão com ela. Aliviada, nossa amiga compartilhou as notícias comigo, e a meu pedido com o grupo, de que a garota e sua família passavam bem.
Acordei sobressaltada, como se tornou costume acontecer várias vezes a cada noite desde o início da guerra, e assim que meus olhos se acostumaram à luz do ipad, fui checar os últimos acontecimentos no facebook. Um dos amigos mais queridos de Gaza, com o qual tenho tido contato quase que diário há varios meses e que insiste em nos proteger das más notícias, recém publicara uma mensagem de alerta com muitas exclamações, como costuma fazer em casos limite, quando o pavor não cabe mais dentro de si. “Israel  assassinou três líderes do Hamas!!! Agora eles vão reagir com muita raiva, de uma maneira como nunca se viu antes!!!”.
Tentei contato em privado, mas como já acontecera com outros durante a guerra, ele não me respondeu, nem ao telefone na manhã seguinte. Alguns silenciam por medo de serem relacionados a israelenses (judeus da diáspora como eu costumam fazer parte desta categoria), e se esforçam em apagar os rastros. Outros o fazem para externar a raiva e frustração, buscando desesperadamente materializar sua angústia diante do sentimento de impotência perante o inimigo. Mas o calar dele é outro. Não quer ser o portador de nada que macule a vida do próximo. Esforça-se além do limite para não deixar transparecer nenhum sentimento negativo por medo de ferir ou impressionar alguém. Já lhe garanti colo, ombro e ouvido nestes momentos e, poucas vezes, muito poucas mesmo, ele conseguiu compartilhar uma pequena parcela da dor e do desespero, para prontamente me pedir desculpas pelo incômodo e logo contar alguma piada. Dono de apurado senso de humor, várias vezes me fez passar das lágrimas às gargalhadas, e rimos juntos de um e de outro lado, e do ridículo de nossa situação.
Não faz muito tempo, sugeri que ele se casasse com a garota de Gaza. Garanti sua aparência de boneca, que uma vez tive a oportunidade de conferir em uma fotografia que ela prontamente ocultara, um pouco por medo, um pouco por pudor, quando percebeu minha bisbilhotice. “Casar custa muito caro”, me respondeu com pesar, sentindo-se distante de um dos poucos prazeres possíveis ali, e quase que inatingível para um morador de um campo de refugiados. Inteligente, tem garantido seu emprego na administração da importação de mercadorias israelenses em uma pequena empresa local. “Meu patrão morre de medo de me perder”, me contou rindo. Peço a Deus que possamos ser testemunhas de um novo mundo, que ele se torne um grande empresário e possa desposar nossa princesa.
 “Como você sabe que não é um perfil falso?”, me indagou um novo conhecido. “Não há nada que garanta sua veracidade. Você já ouviu sua voz? Viu sua imagem?” “Não garanto”, respondi, “mas sinto”. Minha experiência de mais de dez anos em redes sociais ativou em mim um profundo senso de discernimento. Verdade que já me enganei antes, me frustrei muitas vezes, mas acertei em todas aquelas em que apostei. Se não lhe der uma chance, a verdade nunca terá espaço para se manifestar. Aprendi a aceitar o oculto como parte da cultura da região, do pudor religioso, ou como meio de precaução. Aceitar o não-dito e o não revelado como parte do acordo, me permite chegar muito mais perto da essência, me tornando um porto seguro, que é o que me importa no momento.


Pela manhã, cheguei ao grupo a tempo de apagar a mensagem da israelense, atitude que somente tomo em casos muito particulares, decidindo por ela após me certificar de que ninguém de Gaza a tinha lido, o que fizera através uma ferramenta disponível apenas para grupos pequenos e que permite saber quem visualizou cada publicação. Rapidamente a chamei em particular, tomando o cuidado de lhe dar alguma satisfação quanto à minha atitude radical. O artigo publicado na mídia israelense, que ela compartilhara na intenção de demonstrar empatia, alertava para o fato da população de Gaza ser punida pelo Hamas com a morte em caso de acusação de espionagem para Israel. Na impossibilidade de provar a suspeita, todo cuidado é pouco. Não que nossos amigos palestinos não saibam disto, mas diante do pavor em que estão vivendo, poderiam desistir da única forma de comunicação com o mundo exterior, o nosso pequeno grupo secreto. Ela aceitou minha atitude, apesar de não ter compreendido muito bem o risco, mas acreditou na minha capacidade de julgamento. Aproveitei a ocasião para lhe transmitir as boas novas: a garota de Gaza, agora professora graduada de inglês para pequenos, concordara em conversar com ela depois da guerra sobre seu apelo para que trabalhassem juntas com as crianças dos dois lados da fronteira, a fim de que através da educação compartilhada, como em outros modelos já existentes dentro do território israelense, se constituíssem laços ao invés de barreiras. O futuro já existe, mesmo que ainda em forma de ideia. Que seja construído de sonhos.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

Bum!

São Paulo, 19 de agosto de 2014

Após o silêncio durante os cinco dias do mais extenso período de cessar-fogo desde o início da guerra, hoje os ataques recomeçaram. De um lado, o Hamas lançou mísseis na direção das regiões sul e central de Israel. Moradores de Beer Sheva a Tel Aviv, passando por Jerusalém foram alertados a procurar abrigos seguros. As explosões do sistema anti-mísseis conhecido como o Domo de Ferro, a grande vedete da guerra até o momento, foram ouvidas em Dura, cidade da Cisjordânia perto de Hebron, e que não conta com nenhum sistema de proteção. Do outro lado, o exército israelense tornou a bombardear a faixa de Gaza, mais uma vez castigando a população, parte da qual teve a vida reduzida a ruínas.


Tão logo os primeiros mísseis foram lançados na direção de Israel, as redes sociais começaram a se movimentar. Minha linha do tempo no Facebook foi gradualmente tomada por mensagens de amigos que relatavam seu medo, seus passos e sua exaustão. Se por um lado, eu já organizara minha rede de contatos de modo a me preservar das tonalidades acusatórias mais acaloradas, por outro, o espaço dedicado ao cuidado com aqueles que buscavam o diálogo se expandiu. Desde os primeiros indícios da retomada da guerra, tive o cuidado de publicar, tanto em minha linha do tempo como em um grupo que administro, mensagens de apoio e acolhimento aos amigos dos dois lados do combate. 


Hoje, os primeiros depoimentos vieram daqueles que vivem na região fronteiriça à Faixa de Gaza, seguidos pelos dos moradores de Tel Aviv e arredores, e finalmente dos de Jerusalém. Me comuniquei em mensagens privadas com alguns deles enquanto estavam em abrigos e buscavam não transparecer a ansiedade. Mas já estavam cansados, exaustos depois de mais de um mês sob a tensão que não conseguiam disfarçar. O cessar-fogo e as negociações no Cairo haviam gerado alguma esperança mesmo que remota, de que finalmente se iniciasse um processo de paz marcado por acordos políticos e não mais pela violência. Durante os dias de calmaria, grupos de árabes e judeus israelenses foram às ruas para manifestar seu repúdio à guerra: “árabes e judeus se recusam a ser inimigos” foi o slogan mais ouvido, chegando a levar 15.000 pessoas à Praça Rabin em Tel Aviv no último sábado, somando imagens nas redes sociais, àquelas estampadas horas antes das praias lotadas em um belo dia de verão, e que eu havia observado com o coração apertado, um pouco pelo medo da impermanência, e muito pelo pensamento na população de Gaza que naquele momento tentava recolher corpos sob os escombros.


As primeiras mensagens traziam em si o tom do desabafo: “tenho medo, isto nunca vai acabar”, diziam as entrelinhas. Mas, rapidamente as manifestações de preocupação com os amigos do outro lado da linha de fogo começaram a surgir, em uníssono com as de amigos brasileiros, distantes do conflito e que, cientes do cuidado de minhas manifestações, passaram a seguir minhas mensagens, assim como eu seguia as daqueles em quem confiava. Rudimentos de paz? Estamos clamando pelo mesmo conceito, ou nos apegamos a simbolismos genéricos que aplacam a nossa sede imediatista por fórmulas prontas?


Neste momento prefiro não me fixar à necessidade em obter estas respostas, mas sim em aceitar como absolutamente legítimas e belas as manifestações que testemunho, como a da garota de Gaza, que ao mesmo tempo em que escutava o som dos bombardeios inimigos em sua cidade, nos chamava em nosso grupo fechado a celebrar sua graduação na faculdade local, e que há cerca de apenas uma semana  manifestara sua admiração em conversar comigo, a primeira mulher judia com quem ela jamais falara em toda a sua vida.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

Carta para V.

V. querida,
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Eu peço a Deus que adoce as palavras de minha boca (ou meus dedos no teclado!). Teu email chegou a mim também, e eu queria compartilhar contigo algumas impressões. Em um momento em que estamos todos tão tomados pela dor, em que nos vemos como testemunhas do horror, onde às vezes algumas questões podem, sem intenção, gerar mal entendidos.Antes de mais nada, acho muito, muito importante te contar de que lugar eu falo. Tenho profundo amor, respeito e admiração por você e sua família. Sua mãe, preocupada, chegou a me ligar, e me deixou um livro de presente na USP, que por conta desses dias tão confusos, eu confesso envergonhada, ainda não consegui pegar. Eu vi nisto um ato de amor e doação tão típicos dela, e minha alma sorriu. Não somente por ser filha de quem você é, ou amiga de tantos que me são tão caros, mas por ser V., eu quis te responder. Tenho recebido uma enxurrada de preces, pedidos, cartas, textos bem pensados, emoções, dúvidas e toda a sorte de manifestações de angústia que você possa imaginar. Não dou conta de tudo, mas ali, era você.
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Eu sou uma das que não só advogam por uma postura crítica em relação a Israel, como tenho trabalhado incansavelmente na formação de jovens on e offline e no estabelecimento de canais de comunicação, não somente entre palestinos e israelenses, mas principalmente na humanização das relações entre palestinos de Gaza aterrorizados e a centímentros da morte e de israelenses destroçados pelos ataques constantes de mísseis, e a vida interrompida dos dois lados. Ainda assim, Manal, que mora em Belém, na Cisjordânia, esses dias deu a luz a uma linda menininha, nos lembrando que a vida não espera a guerra acabar. Eu concordo e incentivo toda a movimentação que vise a interrupção imediata de qualquer ato de violência, e queira Deus, o estabelecimento da paz na região que me é tão querida. Existem inúmeras nuances na interpretação dos fatos, e de tantas que são, fica difícil estabelecer uma verdade única. Então, com humildade, aceito que todas as verdades têm seu lugar e sua razão de ser. Mas foram duas palavras que você usou, e somente elas, que me geraram um arrepio na espinha. Você se referiu a Israel como “fascista e perverso”, e é neste ponto que eu queria tocar. Estamos falando de guerra, ocupação na Cisjordânia e cerco a Gaza (outras pessoas classificarão de outra forma, mas não é esta a discussão que me importa), excesso de violência e morte de civis. Atos que, a meu ver, devem sim ser julgados pela comunidade internacional. Tanto aqueles cometidos por Israel, como pelo Hamas, estes últimos, não somente em relação ao inimigo, mas à sua própria gente. Mas o ser “fascista” implica em filosofia, na intenção de deslegitimação do outro. “Perverso”, pressupõe ter o ódio nas entranhas e satisfazer-se diante do sofrimento deste outro. Estes termos me parecem perigosos, e nos aproximam daqueles que, semana passada, caminharam pela Brigadeiro Luís Antonio, gritando “fora judeus”, “morte aos judeus”, além de outras tantas falas inflamadas do mesmo teor, bem aqui, na nossa paisagem e na nossa língua-mãe. Nos colocam a um passo daqueles que destroem, incendeiam e espalham terror pelas ruas da nossa amada Paris. Se eu te escrevo é porque eu sei que você não é um deles, nem de longe. Eu sei que a dor e o sentimento de impotência te impedem de dormir à noite, Assim como a mim, também com a vida interrompida. E eu sei que é o sentimento de amor ao próximo que te move, que a indignação e a urgência tomam conta do teu coração, e eu me uno a você neste grito. Grito de dor por todas as barbáries que esta nossa humanindade tem testemunhado, e mais ainda por esta especificamente, que se por um lado, insiste em querer me representar, por outro vitimiza auqueles que eu permiti que fizessem parte do meu ser. Mas é preciso algum cuidado, para que no calor da emoção, não descartemos toda a textura de um conflito feito de gente, e caiamos na tentação de apontar vítimas e algozes como se se tratasse de uma dimensão achatada, onde não se identifiquem os rostos. No meio desta cena dantesca, tenho encontrado muitas bênçãos, e é nelas que me fio. Deixo aqui o link para dois vídeos sensíveis, vindos do fundo da alma. O primeiro é da menina Angie, que cheia de dor, quis mostrar ao mundo o horror que ela tem presenciado em Gaza. Ela me disse hoje que nunca imaginou que seu vídeo causasse tanto impacto, que recebeu mais de mil mensagens de desconhecidos, ao que lhe respondi que pequenas atitudes têm um poder infinito. O segundo, é uma resposta de uma israelense, Adele, que mora na fronteira com Gaza. Que estas duas mulheres possam, de alguma forma, preencher teu coração de esperança, como fizeram com o meu. Um grande beijo e um abraço apertado, que é isto mesmo o que estamos precisando neste momento. Angie:
Adele:

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