Dentre todas as polêmicas que compõem o debate em torno do conflito Israel-Palestina, acentuadas nas últimas semanas devido ao recrudescimento do conflito entre Israel e o governo do Hamas na Operação Limite Protetor, provavelmente uma das questões mais espinhosas se refere à acusação de que Israel exerceria um regime de “apartheid” em relação à população palestina nos Territórios Ocupados, e talvez até mesmo dentro de Israel – emulando o apartheid (do africâner, “separação”) original, imposto pela elite branca da África do Sul à população negra, mestiça e indiana.
Partidários desta visão apontam para a situação na Cisjordânia, de gritante discrepância entre a situação econômica das vilas palestinas nas áreas B e C (sob controle total ou parcial israelense) se comparadas aos assentamentos israelenses, protegidos pelo exército e subsidiados pelas políticas governamentais e empresas privadas de Israel; os checkpoints no coração do território, que dificultam significativamente a liberdade de movimento; chegando ao extremo de existir estradas separadas para colonos israelenses e para a população palestina. Já críticos do uso do termo apartheid chamam atenção para as diferenças entre Israel e a África do Sul: cidadãos palestino-israelenses (i.e. somente nos territórios de 1948), por exemplo, possuem igualdade nominal e direitos civis, existem palestinos servindo na IDF e membros do Knesset, o parlamento israelense, etc. Também há quem argumente que descrever a política de Israel como apartheid diminui e desrespeita a memória coletiva das vítimas do regime segregacionista.
Apesar da negativa das autoridades israelenses, e de seus aliados no exterior, de que Israel praticaria uma forma de segregação entre sua população judaica-israelense e árabe-palestina, grande parte das políticas de Israel para a Cisjordânia e Jerusalém Oriental pode ser enquadrada dentro do escopo de um termo da língua hebraica – surgido, supreendentemente, do interior do establishment político e acadêmico israelense e promovido pelos formuladores de suas políticas de segurança –; a palavra hafradá (orig.: הפרדה), cuja tradução literal seria, assim como apartheid, “separação”, “divisão” ou “segregação”. Ativistas pela causa palestina, como o americano-israelense Jeff Halper, do Israeli Committee Against House Demolition (ICAHD), argumentam que hafradá, guardadas suas semelhanças significantes com apartheid, constituiria uma descrição mais aguçada da “visão e política de Israel para com os palestinos nos Territórios Ocupados”.
O termo hafradá começou a assumir seu caráter político-paradigmático e adentrar o uso corrente tanto dos meios oficiais quanto da população civil israelense a partir da década de 1990, com os trabalhos do professor da Universidade de Haifa Daniel “Dan” Schueftan, e com certas “políticas de segurança” adotadas pelo então primeiro-ministro Yitzhak Rabin, como a barreira que separa Israel da Faixa de Gaza. A palavra também apareceu em campanhas políticas, sempre carregada de uma conotação positiva, como na eleição de Ehud Barak para primeiro-ministro, em 1999, realizada sob o slogan “Nós aqui. Eles lá”. Na época, não estava explícito onde exatamente seriam “aqui” e “lá”. E em 2001 Ariel Sharon se elegeu prometendo prover “paz e segurança” fazendo uma “hafradá do comprimento e largura da terra”.
No ano de 2002, a hafradá passou a ser associada à ideia, promovida por Sharon, de “desengajamento unilateral” (orig.: “Hafradá Chad Tzdadit”), da qual fazia parte a construção, iniciada neste mesmo ano, da barreira de separação (orig: “Geder HaHafradá”), que se estende em parte na Linha Verde que separa Israel dos Territórios Ocupados, em parte Cisjordânia adentro, mantendo do “lado de cá” grande blocos de assentamentos, como Gush Etzion e Ariel, e isolando cidades palestinas como Qalqilyah e Belém do “lado de lá”, e continua sendo construída até o momento. O nome original da iniciativa, “Plano de Separação”, foi trocado por “Plano de Desengajamento”, pois, como admitiu o próprio Sharon em sua biografia, “‘Separação’ soava mal, especialmente em inglês, pois evocava apartheid”.
O plano de desengajamento de Sharon foi adotado oficialmente por Israel em 2005, e constituiu uma estratégia pragmática para o avanço e a normalização da ocupação na Cisjordânia. Foi e continua sendo executado unilateralmente, i.e. imposto sem o consentimento da Autoridade Palestina ou de sua população. Parte do plano incluiu, naturalmente, cessões; todos os assentamentos israelenses na desvalorizada Faixa de Gaza foram forçosamente demolidos, e seus nove mil colonos foram evacuados ou deixaram o território voluntariamente. Eleições foram convocadas para a Autoridade Palestina em 2006, resultando numa vitória apertada do islamista Hamas sobre o laico e moderado Fatah, vitória essa que não foi reconhecida por Israel, EUA, a União Europeia e a maioria do mundo ocidental, que se pôs a sancionar economicamente a Autoridade Palestina. Tensões entre ambas as facções acabaram explodindo com a Batalha da Faixa de Gaza em Julho de 2007, na qual o Hamas acabou por derrotar o Fatah em uma guerra civil de baixa escala, e estabeleceu controle total sobre o pequeno território. O Fatah, por sua vez, continuou a controlar a Área A da Cisjordânia. O resultado no longo prazo você confere em qualquer jornal ou site de notícias dos últimos dias.
O doutor Schueftan, em uma entrevista ao The Jerusalem Report em 2005, após a adoção oficial do “Plano de Desengajamento”, afirmou que este constituía apenas o primeiro passo em um “processo histórico mais amplo”, e que a “característica subjacente” do desengajamento não é que ele trará paz, mas sim que impedirá o “terror perpétuo”.
Qual é a importância do conceito de hafradá no contexto da Operação Limite Protetor? Pra começar, eu coloco minhas fichas que Israel não vai reocupar militarmente a Faixa de Gaza, tendo ou não capacidade para isso. Além da divisão Hamas-Fatah ser benéfica pra execução do “Plano de Desengajamento”, o Hamas ainda garante alguma estabilidade ao território, contendo outros grupos mais radicais, como a Jihad Islâmica. Um retorno à situação pré-2005 seria extremamente custoso para Israel, exatamente o contrário do que pretende o “desengajamento”, i.e., manter uma ocupação estável e barata.
Como parte do processo amplo e de longo prazo da hafradá, está previsto o estabelecimento de um Estado Palestino independente nas áreas mais densamente populosas (Ramallah, Belém, Jericó, Jenin, Nablus, parte de Hebron, etc.) – cabendo aqui perguntar, qual seria o grau real de independência de uma instância administrativa operando em território descontínuo (somente na área A da Cisjordânia), com uma autonomia imposta por Israel, ao invés de negociada, e economicamente dependente? Novamente, a semelhança com os bantustões sul-africanos é preocupante.
O professor de Biologia Eitan Harel, da Universidade Hebraica de Jerusalém, disse ao Le Monde Diplomatique em 1996: “O sonho da Grande Israel foi substituído pela realidade de uma Israel menor. O que importa para as pessoas é viver melhor aqui, e se você lhes perguntar pelo que elas desejam e esperam, a resposta da maioria é: hafradá, separação”. Ao mesmo tempo em que a hafradá é a desistência de uma Grande Israel, representa, no entanto, também a consolidação da presença israelense na Cisjordânia – e, especula-se, o fim do paradigma da solução de “Dois Estados Para Dois Povos”.
Raphael, gostei. Bastante informação. Quais grupos e indivíduos executam esse projeto?
Valeu, Marcel. Qual projeto? O desengajamento unilateral virou política oficial do governo israelense.
Qualquer governo? Quais partidos estão por trás dessa política?
Bem, a política começou a ser formulada na década de 90, e aplicada durante o governo Rabin (portanto, Avodá). Mas na prática, e especialmente depois da 2a Intifada, sempre foi mais uma política de Estado do que de governo. Houveram variações no modo como cada primeiro-ministro desde então (fosse Avodá, Likud ou Kadima) a aplicou – a “hard hafrada” de Rabin e Barak versus a “soft hafrada” de Shimon Peres -, mas em geral o desengajamento unilateral é quase um consenso entre os partidos da centro-direita à centro-esquerda. Antes de uma política ideológica, eu o vejo mais como uma estratégia pragmática.
Os opositores da hafradá são, em geral, os partidos à esquerda do Avodá tanto sionistas quanto não-sionistas, e, em parte, também os partidos da extrema-direita, pois sua aplicação resultaria no desmantelamento de muitos dos assentamentos menores e na criação de um “Estado palestino” na Área A.