O Dia Mais Santo

Sexta feira é o dia santo para muçulmanos e judeus. No islã, é o dia que se realiza a oração de Juma, um pouco mais longa do que as outras e precedida de um sermão especial. Para os judeus, na sexta à noite começa o sétimo dia da semana, Shabat. No dia 06 de julho, presenciei a sexta feira mais santa de todas que vivi ao longo dos meus 27 anos.

Na semana em questão eu me encontrava em Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina. Fui convidada a participar da quarta Muslim Jewish Conference, que recebeu cerca de 100 jovens profissionais de 39 países ao redor do mundo. O objetivo: gerar um espaço onde podemos dialogar. Da Argentina ao Egito, conheci pessoas incríveis dos mais variados lugares.

Em nosso primeiro encontro na Conferência, nos pediram um simples exercício. Que judeus formassem grupos de judeus e muçulmanos grupos de muçulmanos e, em uma folha bem grande, escrevessem os estereótipos que a sociedade possui a respeito da sua cultura/religião. Primeiro ponto: você percebe que os preconceitos são os mesmos no mundo inteiro. No mundo inteiro boa parte das pessoas acha que todos os judeus são ricos, médicos e advogados, controlam a mídia, são fascistas e comunistas ao mesmo tempo. No mundo inteiro, boa parte das pessoas acha que todas as mulheres muçulmanas são reprimidas, que islamismo e terrorismo estão diretamente conectados e que todos os muçulmanos são árabes. Pois é. O segundo ponto: ao declararmos quais são os estereótipos que existem, deixamos claro que é isso que eles são… Estereótipos. E aí podemos começar a conversar.

Judeus e muçulmanos rezando juntos no memorial

Judeus e muçulmanos rezando juntos no memorial

Nos dias que se seguiram, a maior parte do tempo era dedicada aos comitês. Eu estava no comitê de Resolução de Conflitos. Foi incrível descobrir e aprender, o pouco que deu em menos de uma semana, sobre toda uma teoria a respeito, estudar o passo a passo. Como o conflito se cria, como ele pode se resolver. E não é fácil colocar em ação aquilo que é estudado há décadas por psicólogos, historiadores e profissionais de Relações Internacionais. E, além da teoria, a prática. Meu grupo, tendo como participantes pessoas de países bem distantes, chegou a questões similares em relação às suas comunidades locais e, assim, criou projetos que podem ser adaptados a diferentes lugares. Estamos trabalhando nisso!

Tivemos a semana inteira uma série de palestras, aulas e espaços sociais. Você descobre que faz amizades pelo papo, os assuntos, interesses. E não pela religião ou pela língua que você fala, ou pela cultura na qual você vive. Só depois de algumas horas o assunto “você é judeu, muçulmano ou outra coisa?” surgia à tona e, normalmente, porque estávamos a caminho de um bar e nesse caso é preciso ter cuidado: muçulmanos praticantes não ingerem álcool. Respeito é essencial.

Na quinta feira, um dia antes da Conferência terminar, fomos a Srebrenica. Esta foi a cidade que serviu de palco para o massacre de muçulmanos durante a guerra em 1995. Um genocídio real, tentativa de limpeza étnica que aconteceu há menos de 20 anos. Eu estava viva quando isso aconteceu… e passei boa parte da minha existência estudando sobre o Holocausto e ouvindo “que coisas assim nunca mais aconteçam”. Incrível como acontece o tempo todo e a gente nem fala disso. Em Srebrenica, cerca de 8 mil civis perderam suas vidas por serem muçulmanos. Ainda hoje, corpos estão sendo reconhecidos e enterrados. Rezamos juntos, em árabe e hebraico, pelo descanso destas almas e pela paz.

Túmulos de vítimas do genocídio em Srebrenica

Túmulos de vítimas do genocídio em Srebrenic

Nesse ínterim, foi fabuloso pesquisar e encontrar muitas ocasiões na qual judeus e muçulmanos não só conviveram bem, como se ajudaram. Exatamente estes eventos, a Shoá (Holocausto) e a guerra na Bósnia, muçulmanos salvaram judeus e judeus salvaram muçulmanos.

Mas eu comecei falando da sexta feira. Na sexta, a Conferência acabou ao meio dia. Muitos muçulmanos foram à maior mesquita de Sarajevo para a Juma. Falaram que quem quisesse poderia acompanhá-los. Então eles tiveram vários acompanhantes. Escutamos a oração e o sermão sem entender praticamente nada (até porque o Imã falou em bósnio), mas aquilo em si era santo. O Imã nos recebeu da melhor forma possível, conversou conosco, nos deu boas vindas e esclareceu que as relações com os judeus são boas. Seu tom de voz continha estranheza, um ar de “porque não seriam?”. A mesquita é linda e nossos colegas da Conferência estavam muito animados de nos receber em seu local sagrado.

À noite fomos para a sinagoga celebrar a entrada do Shabat. Todos foram avisados do horário de encontro no hotel e, chegando na recepção, não tive surpresas em ver praticamente o grupo inteiro, judeus, cristãos, ateus, agnósticos, budistas e muçulmanos. O líder da sinagoga (eles não têm um rabino local) nos recebeu de braços abertos, conversou com todos, cantou em ladino e rezou em tom sefaradi (costume judaico provindo do Oriente Médio). Eu entendo melhor o que se passa em uma reza de Shabat, já que frequento toda semana. E nunca foi tão especial. Cantar rezas de louvor a D’s fez tanto sentido com todos nós, irmãos, todos criados “à Sua semelhança”, presentes, abraçados, unidos. Se paraíso existe, deve ser um local assim. Com todos juntos, rezando com pensamentos bons, dando as mãos sem olhar pra qual religião, de qual nacionalidade, de que cor é a pessoa que está ao nosso lado.

Tudo isso me veio a mente na última sexta, quando fui à sinagoga que sempre frequento e percebi que as rezas cantadas me traziam de volta esse momento. A sexta feira mais santa que já presenciei.

Muçulmanos e Judeus na mesquita após a Juma

Muçulmanos e Judeus na mesquita após a Juma

Veio nos visitar no meio da semana da Conferência um rabino israelense que frequenta a cidade sempre que possível, David Rosen, junto com o Mufti de Sarajevo. Ele disse algo tão simples e, ainda assim, tão importante de lembrarmos: “se vocês não quiserem que a religião seja um problema, deixem que ela seja a solução”.

Texto publicado originalmente no blog Middle East Talks … vamos bater um papo sobre Oriente Médio?.

Este e outros textos da autora podem ser conferidos em http://orientemediohoje.com/

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