Acordei aquele dia me sentindo vazia.
Eu estava em piloto automático. Vesti minhas roupas, um jeans e camiseta, e peguei o papel onde tinha anotado o endereço. Tomei meu café, como sempre, e fui para o ponto de ônibus. Não me lembro nada sobre o trajeto, a não ser ter mudado de ônibus umas três vezes.
Quando cheguei na base militar, olhei para dentro dos portões e pensei em como estava tentando falar com alguém lá dentro há três meses, desde a chegada da carta. Tudo o que me diziam era que eu não tinha com quem falar antes de me alistar.
Vamos rebobinar um pouco, uns dois anos antes deste dia.
Assim que cheguei em Israel, para estudar na Hebrew University, em Jerusalém, tive que ir à um escritório militar e pegar uma autorização para me inscrever no exército, como nasci em Israel era a única menina no programa preparatório para estrangeiros que precisava ir lá.
No escritório militar, um menino, mais ou menos da minha idade, de farda, depois de ouvir a minha história, e o fato de que eu queria ir para a universidade e não para o exército, me disse que eu tinha que assinar alguns papéis e pronto.
Os documentos estavam em hebraico, obviamente, e eu que havia retomado a minha leitura da língua recentemente, ainda tinha muita dificuldade em entender hebraico formal, por isso pedi a ele que me lesse o documento.
Ele me disse que a única coisa que estava escrita no documento era que eu podia voltar depois da minha formatura e renegociar meu status.
Fiquei tão aliviada, eu poderia estudar em paz e quando a hora chegasse eu seria mais velha, e estaria melhor preparada para lidar com o exército, eu tinha 19 anos na época, e era assustador falar com eles, mesmo quando o eles com quem falei era alguém que tinha 19 anos também.
De volta ao dia surreal:
Entrei na base militar, tinha um monte de gente com roupa civil também, foi aí que eu entendi que eu não era a única que tinha hora marcada aquele dia.
Eles eram um pouco mais novos que eu, completaria 21 naquele ano e eles tinham entre 17 e 18 anos. Estavam tão felizes.
Entrei num grande salão onde tínhamos que encontrar nossos nomes em uma lista. Quando encontrei, um garoto de farda me entregou aquelas placas que soldados tem com seus nomes, para que sejam identificados caso eles explodam.
Nesse momento minha pressão caiu e comecei a tremer um pouco, então fui beber água, mas o soldado atrás de mim me disse que eu tinha que seguir em frente e que na próxima sala eu poderia beber.
O que eu estava fazendo ali? Tentei perguntar a alguns soldados e a única resposta que consegui foi: você tem que terminar o alistamento e aí vai poder falar com um comandante.
Continuei andando, e recebendo coisas e assinando que eu tinha recebido elas. Coisas tipo meias, e botas, e um kit de costura, e finalmente me perguntaram meu tamanho, me deram uma farda e me disseram para entrar no vestiário e trocar de roupa.
Fiquei chocada! Entrei no vestiário – esta provavelmente foi a cena mais surreal do dia.
Quando entrei vi que era um espaço único, todas as meninas estavam se trocando e vestindo aquelas fardas, varias tiravam fotos umas das outras sorrindo.
Me troquei o mais rápido que consegui, mal tive coragem de olhar no espelho, quem era aquela menina?
Quando sai do outro lado, carregando a sacola cheia, que era comum ver soldados carregando, me encontrei no que parecia um refeitório de kibutz.
Era hora do almoço, mas eu não conseguia comer, peguei uma maça e saí pra fumar um cigarro.
Foi ai que perguntei para uma outra menina: Você está no programa “Atudai” também?
Ela disse que não. Eu não entendi.
Uns três meses antes:
Recebi uma ligação da minha tia, me dizendo que uma carta do exército chegou para mim, e me perguntando se eu queria que ela abrisse a carta. Como eu ia passar o fim de semana com ela, e não achei que fosse importante, pedi a ela que deixasse para eu abrir.
Quando li a carta no final de semana, fiquei muito confusa, dizia que eu teria que me alistar em três meses, e que eu fazia parte do Programa Atudai para estudantes universitários. Eu estava terminando meu segundo semestre em química; estava amando e estudando muito para ter boas notas, o que eu conseguia fazer somente para metade das disciplinas obrigatórias já que eu era uma das únicas no curso de química que trabalhava.
Um monte de perguntas me vieram a mente:
Eu teria que largar a faculdade?
Onde eles estavam me alistando? Eu ainda não tinha acabado meus estudos: não era pra isso acontecer!
Foi nisso que me inscrevi há dois anos? Aquele filho da mãe! Não foi isso que ele me disse.
Fui perguntar para minha tia para ter certeza que tinha entendido corretamente.
Ela me disse que tínhamos que falar com alguém para entendermos melhor. Ela começou uma série de telefonemas que levaram a lugar nenhum a não ser a este dia sem nenhuma informação de valor.
Depois do almoço me disseram para ir à uma reunião com meu comandante, eu estava ansiosa para começar a fazer perguntas.
Quando entrei na sala já havia umas dez pessoas lá. Era uma sala bem pequena.
A comandante entrou na sala e começou a explicar o Programa Adutai:
- Vocês virão fazer um mês de treinamento básico durante as suas férias da universidade,
Comecei a chorar, bem discretamente.
- Vocês trabalharão para o exército na sua área de formação,
- Vocês servirão o exército por três anos (um a mais do que normalmente meninas servem)
- Se vocês reprovarem em qualquer matéria o exército se reserva o direito de alistar vocês imediatamente.
Nessa hora eu já estava chorando descontroladamente.
A comandante acabou sua fala, disse a todos que podiam sair. Comecei a me preparar para levantar quando ela me pediu que ficasse mais um pouco.
Ela me trouxe um copo d’água e pediu para, quando eu estivesse pronta, contar porque eu estava chorando tanto.
Enquanto eu me acalmava, percebi que ela era mais nova que eu.
Comecei a contar sobre o cara que mentiu para mim e me fez assinar o documento, como eu tinha tentado, e falhado, em falar com alguém depois de receber a carta. Contei a ela sobre o trabalho, e como o curso de química era difícil.
E finalmente eu lhe disse que eu nunca mais na vida queria tocar numa arma. E conforme essas palavras saiam da minha boca, me dei conta que se eu trabalhasse com química no exército eu iria trabalhar com todo tipo de armas e comecei a chorar de novo.
Ela me olhou nos olhos e disse que iríamos encontrar um jeito, que ela entendia, e que haviam formas de sair desta situação. Ela me disse que eu poderia encontrar um psiquiatra, para que escreva uma carta dizendo que eu era inapta para servir, ou eu poderia escrever uma carta ao exército dizendo que eu era contra tocar em armas, mas neste caso eu provavelmente iria para a cadeia, e ela disse que me ajudaria com a burocracia para arrumar isso rapidamente.
Eu estava tão grata a essa menina; foi a primeira vez no dia que me senti sã. Como é possível esses jovens pensarem que isso é normal?