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Aqui não se fala a língua da ocupação

A verdade é que eu não vi o ano mudar. Nenhum deles. Quando chegou 5775, vivia o calendário gregoriano. Quando chegou 2015, o judaico. Enquanto meus amigos no Brasil se empanturravam do peru – ou da alternativa vegana – do dia anterior, no primeiro dia de 2015 acordei cedo, tomei o bonde (ou trem, ou trambia, ou tram, como queiram) em Givat haMivtar em direção ao Portão de Damasco da Cidade Velha de Jerusalém, onde encontraria mais umas cinco ou seis pessoas prontas para visitar uma das poucas cidades que fazem parte da Área A da Cisjordânia, região controlada pela Autoridade Palestina como definido pelos Acordos de Oslo.

O organizador da jornada, um russo alemão de origem judaica, colega meu em um curso na Faculdade de Educação Judaica da Universidade Hebraica, é um dos responsáveis pelo Peace Bus, o ônibus da paz, que, durante a recente guerra em Gaza no verão do ano passado, continuamente carregava manifestantes e militantes entre Israel e a fronteira de Gaza em campanhas pelo cessar-fogo imediato. O fogo cessou, mas o trabalho não. As atividades são quase semanais, buscando resultados a longo prazo de coexistência e cooperação.

Éramos sete pessoas curiosas e desocupadas em uma tarde de quinta-feira. Entre nós, apenas um israelense. Um americano que imigrou para Israel há cinco anos – existe tempo máximo para alguém ser considerado um oleh chadash? É uma das minhas eternas dúvidas. Outros três israelenses que haviam se inscrito não apareceram. Um deles assumiu que tinha medo. A cada entrada de Jericó, como em todas as cidades da Área A, há uma placa do governo israelense informando aos visitantes que cidadãos de Israel são proibidos de entrar, com exceção, claro, dos cidadãos árabe-israelenses. No entanto, como é típico das leis, é possível, apesar de difícil, lançar mão de dispositivos legais e entrar e sair ileso de tais cidades, mesmo se chamando Yael Cohen ou Moshe Levi.

Tomamos um ônibus em direção a Maale Adumim, Área C, onde tomaríamos um táxi coletivo para Jericó. A primeira pessoa que encontramos para além do check-point foi Faisal. Palestino, hoje morador de Hizma, na Área C, fala árabe e hebraico. Bom que em algum momento eu decidi escalar a Torre de Babel e aprender outras línguas. Além de mim, só o americano e o organizador conseguiam se comunicar propriamente com Faisal. Mesmo assim, a vontade de compartilhar sua história pessoal era forte. Pegou o celular e, acessando a página na qual traduziram sua narrativa de vida para o inglês, mostrou para cada um em particular. Mas essa divulgação teve um preço. Sua família hoje se recusa a falar com ele. Em algum momento durante o dia, quando descíamos o Monte das Tentações, ele me confidenciou que é muito malvisto pelos árabes palestinos muçulmanos de sua comunidade, principalmente por causa do modo como cria seus filhos: “sem diferença entre homem e mulher. Direitos iguais aos dois. E isso é difícil no mundo muçulmano.” Os problemas com a comunidade já o atingem de modo mais incisivo. Faisal não trabalha há cerca de um ano. Ninguém o quer empregar. Principalmente depois que souberam de sua visita ao Yad VaShem, o Museu do Holocausto em Jerusalém. Quando soube que eu era latino-americana, não hesitou em me perguntar sobre o custo de vida no Brasil. “Me parece a mesma coisa que em Jerusalém. Pelo menos na minha cidade”, respondi. Então me contou que tem parentes na Venezuela. E que não lhe parece uma má ideia tentar a vida na América Latina. “Isso que eu tenho aqui não é vida. O que meus filhos têm não é vida. Aquele presidente da Venezuela, o Chavo [sic], permitiu a entrada de palestinos. Talvez seja bom”

Esse tema da não-vida tornou a aparecer. Osama, outro dos que conhecemos em Jericó, vê a ocupação da Cisjordânia como um cerco que se fecha mais a cada dia, sufocando seus habitantes. Ele também diz não viver. E conta, com decepção, sobre a influência crescente do Hamas na região. “Eu não concordo com essa violência. Mas a Autoridade Palestina não opta pela violência e o que conseguimos até agora? Mais assentamentos. Em um mês de guerra, o Hamas consegue gerar o caos em Israel. Como eu vou dizer para os meus amigos e vizinhos que os israelenses são bons, que querem viver em paz com a gente? Crianças de dez anos são presas por atirar pedras. Dezenas de palestinos morrem nessa região. Os assentamentos não param, e a lei dos colonos é diferente da lei que se aplica aos palestinos.” Na Área C, sim, ele me disse, “aqui me sinto mais livre. Porque aqui sou igual um israelense. Posso andar, dirigir, sentar no mesmo café que eles. É a mesma coisa.”

A frustração estava estampada nos rostos deles, como se caminhassem à margem da estrada, a ponto de desistir. Mas ainda parece haver um desejo por coexistência. Desejo de vida. Uma vida de verdade. E a coexistência não parece impossível. No centro de Jericó, cidade palestina, Área A, conversávamos em hebraico. “Anachnu lo medabrim basafá shel ha kibush”, me disse Osama, rindo. “Nós não falamos na língua da ocupação”. E continuamos na língua da ocupação, porque por ela iniciamos um diálogo.

Para ler a história de Faisal, clique aqui. Sobre sua visita ao Yad VaShem, aqui.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

Os círculos concêntricos do trauma

O conflito entre israelenses e palestinos – ou entre sionistas e árabes, se considerarmos que iniciou-se no século XIX, quando não havia o Estado de Israel nem a nação palestina –  não se resolve com facilidade devido, entre outros motivos, ao medo que aflige ambas as sociedades. Pavor e trauma são sentimentos típicos dos habitantes do naco de terra entre o Jordão e o Mediterrâneo. Enquanto os israelenses são levados a terem medo do mundo muçulmano e dos jihadistas globais, os palestinos carregam rancor e temor de Israel e dos sionistas. Por isso, o sentimento – medo – que une os dois povos em conflito também gera uma sensação única entre ambos: a eliminação iminente nas mãos de seus respectivos nêmesis (muçulmanos jihadistas e Israel). Os palestinos temem Israel, que teme os muçulmanos; círculos concêntricos de trauma, como em um jogo de dardos.

Judeus, que constituem mais de 75% da população do Estado de Israel, são inquestionavelmente reconhecidos por sempre terem sofrido discriminação, perseguições, massacres e, obviamente, o Holocausto. O trauma gerado por essa tragédia, onde foram assassinadas 6 milhões de pessoas – um terço da população judaica do planeta – ainda não abandonou a mentalidade do israelense médio. No nascer do século XXI, os israelenses adquiriram mais um ingrediente para a receita do medo eterno: a Segunda Intifada. Entre 2000 e 2005, palestinos (inclusive mulheres) entravam em discotecas, cafés, pizzarias e ônibus em Israel e, com o apertar de um botão, explodiam-se, no intuito de levar consigo o maior número possível de judeus. À luz do dia, em locais movimentados, os suicidas palestinos criavam cenários dantescos de concreto, metal, sangue e corpos despedaçados. Atualmente, a menção a um novo Holocausto não é rara, e seus possíveis perpetradores são conhecidos: grupos terroristas jihadistas (Hamas, Hezbollah, Estado Islâmico, Al-Qaeda, Boko Haram, etc) e um Irã munido de bombas nucleares. Esses atores frequentemente enfatizam, entre seus objetivos, a matança de judeus e a eliminação do Estado de Israel.

A pregação do medo na questão nuclear iraniana

A narrativa palestina do conflito é extremamente penosa e dolorida. O sofrimento causado pelo Mandato Britânico, pelos sionistas e pelos sucessivos governos israelenses persiste até hoje. Os palestinos foram presos, torturados, mortos e oprimidos pelos britânicos. Além disso, viram o governo da Rainha favorecer os sionistas, que imigravam e adquiriam terras em números significativos no pré-2a Guerra; Sir Herbert Samuel, Alto Comissário inglês na região entre 1920 e 1925, era judeu. Em 1948, os sionistas trouxeram a maior tragédia palestina: a Nakba (catástrofe), onde 700 mil pessoas foram obrigadas a sair de suas casas e vilas, muitos milhares foram mortas e a nação palestina foi humilhada. De 1948 a 1966, os palestinos restantes em Israel foram governados por militares, numa gestão discriminatória e diferente dos demais habitantes do país. Na longa lista de tragédias palestinas causadas por Israel estão Deir Yassin (1948), Kafr Qasim (1956), a Naksa (1967), a traição dos egípcios em 1974 e Sabra e Chatila (1982). Desde 1967, os sucessivos governos israelenses tomaram terras palestinas em Gaza e Cisjordânia, oprimiram e mataram seus moradores, impediram-nos de locomoverem-se, trabalharem e conduzirem suas vidas dignamente. Políticos israelenses no atual governo, como Avigdor Lieberman e Naftali Bennett, falam abertamente na inferioridade cívica dos palestinos e em sua possível expulsão de Israel.

O discurso do trauma na questão de Gaza. Ehud Olmert e Ban Ki-Moon estão retratados na caricatura

Esse enredo de tragédias passadas e presentes, sofrimento histórico e recente cria, nas mentes de palestinos e israelenses, a clara possibilidade de novas catástrofes e massacres. Esse medo é muito presente nas produções artística e cinematográfica, nos discursos políticos, nas notícias de jornal e nos diálogos rotineiros. Sociedades traumatizadas, que em qualquer interação com a outra carregam esse trauma e o medo de uma traição, uma reviravolta e de ver-se exposto e indefeso ao “inimigo”. Nas muitas conferências, planos, acordos e road maps de paz, um elemento de pressão popular (e até mesmo pessoal, na mente dos líderes) é o medo, o qual trava concessões, impede aberturas e antecipa cenários somente negativos. Governantes que utilizem-se do discurso do medo são favorecidos e obtém simpatia popular. Políticos que falem de “concessões”, “sacrifícios” e “empatia” são desmoralizados após o próximo atentado terrorista palestino ou a próxima punição coletiva israelense. Os estímulos errados aos políticos geram os sentimentos errados nos cidadãos, esse círculo fecha-se, alimenta-se e seguimos caminhando como caranguejos, transversalmente aos compromissos necessários à paz.

Coração partido, coração aberto

Hoje Manal, que vive em Bethlehem me procurou. Conversa fiada, daquelas só possíveis quando nos desvinculamos do que nos separa. Me apressei em perguntar por sua filhinha, a mais nova de quatro irmãos, que nascera durante a guerra de Gaza. “Doce! Já começou a comer!” Quando nasceu, publiquei sua foto em nosso grupo, que ficou um bom tempo em destaque, nos lembrando e lhe agradecendo por nos manter na corrente da vida. 

Os planetas devem ter feito alguma dança especial hoje, pois subitamente, depois de alguns dias tensos no grupo tentando a todo custo provar a novos membros, ainda crus, de que o diálogo era possível, eis que pela primeira vez depois da guerra os meninos e meninas de Gaza voltaram a falar. Ah, que bênção!

Uma grande amiga israelense que sinto como irmã de alma havia publicado uma chamada para um treinamento de observadores dos direitos humanos em Gaza, e logo nos organizamos para que todos nossos amigos fossem avisados. Mas eu não esperava, ninguém esperava, só não sei o quanto os outros se deram conta, de que despertaríamos fantasmas.

Mais cedo, havíamos conversado sobre o medo que toma conta dos israelenses e diante de afirmações muito precisas a respeito do que deveria ou não ser feito para combater a inércia, eu concluíra muito intimamente, que nossa atitude de acolhimento ajudaria muito mais. Talvez isto tenha me preparado para o que viria a seguir.

A menina de Gaza voltou, o garoto também. Em uma conversa privada, ela me contou que haviam se conhecido no grupo, e se tornado grandes amigos  – tomara que se casem! – festejou meu coração de mãe judia. Um menino novo, pela primeira vez falou sobre suas dores. Um a um, como que por encanto, abriram seus corações. Temerosos, quebrados, cheios de trauma e dor. Belas, lindas criaturas bonitas. 

Mais tarde, o mais velho deles, que já começa a assumir ares de homem responsável, me pediu que eu cuidasse de alertá-los para que não mencionassem suas atividades no grupo entre os seus. “Eles são livres no grupo, mas na vida real, não”. Me disse que um amigo tinha sido envenenado, mas que já estava a salvo na Malásia. O que é medo, fantasia, confusão, e o que é realidade?

Não sei. Sobre os israelenses, eu concluíra, que se o medo surge, é legítimo e deve ser acolhido, independente dos fatos. O medo de Gaza também.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

TRANSMISSÃO | Ao vivo de Jerusalém, com Michel Gherman

As videoconferências irão ao ar às segundas-feiras, às 20h, nos meses de dezembro e janeiro. Acompanhe ao vivo!

Para enviar perguntas, é necessário estar conectado no Twitter (https://twitter.com/) e acessar o link direto da Twitcam, que será disponibilizado poucos minutos antes do início da videoconferência.

Envie perguntas ao palestrante! Conecte-se no Twitter e acesse: http://twitcam.livestream.com/gbpvg

“Ao vivo de Jerusalém”, com Michel Gherman

A partir desta segunda-feira, 01/12, o Fórum 18 dá inicio a mais um projeto! Por meio de seu canal no twitcam, serão apresentadas análises conjunturais do historiador Michel Gherman, direito de Jerusalém. As transmissões ao vivo irão ao ar nos meses de dezembro e janeiro, sempre às segundas-feiras, às 20h (horário de Brasília). O público poderá participar, enviando perguntas por meio do Twitter.

O tema do primeiro encontro será a radicalização de determinados setores da sociedade israelense, que culminaram no ataque à escola mista de judeus e árabes em Jerusalém Oriental. Participe!

Sem título

Na última quarta-feira, dia 26/11, foi realizado um programa piloto, em que o historiador analisou a Lei do Estado Nação Judaico, proposta por Benjamin Netanyahu. Veja aqui.

Bem vindos, judeus da diáspora, à Israel que vocês têm evitado

Por tempo demais, judeus da diáspora têm defendido um Israel imaginário. O real parece-se muito mais com o descrito na controversa Lei do Estado-nação.

No geral, esta não foi uma semana particularmente boa para ser israelense. Com a aprovação altamente controversa, pelo gabinete israelense, da lei do Estado-nação de Israel, parece que o termo Estado judaico e democrático finalmente foi enviado para a Lua, junto com unicórnios, dragões e outros seres míticos.

O projeto de lei - na realidade, há três versões diferentes atualmente disputando a aprovação - visa resolver a tensão inata da dupla identidade de Israel, tanto judaica quanto democrática, inclinando a balança fortemente para o lado judaico. Com efeito, é uma tentativa da direita de afirmar o status de Israel como o lar nacional do povo judeu, em conformidade com a Declaração de Independência de Israel, mas sem incômodas tradições gregas que só atrapalham.
A versão do Chaver Knesset (CK) do Likud Zeev Elkin, a mais extrema das três e uma das duas aprovadas pelo gabinete essa semana, retira a palavra democrático da definição da identidade de Israel como uma nação, faz com que os princípios democráticos de Israel sejam secundários à sua identidade judaica e libera o Estado para permitir às pessoas que pertencem a uma religião ou nacionalidade a criação de comunidades separadas.

Em uma versão mais suave do projeto de lei, proposta pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu - a qual espera-se que seja aquela aprovada em definitivo - os termos judaico e democrático não aparecem; no entanto, outra palavra-chave é eliminada: igualdade. Em vez de prometer total igualdade religiosa, social e nacional a todos os cidadãos, independentemente do sexo, raça ou credo, como prometido na Declaração de Independência de Israel, o projeto de lei de Netanyahu inclui a sentença, cuidadosamente redigida, Israel vai defender os direitos pessoais de todos os cidadãos, em conformidade com todas as leis.

O primeiro-ministro Netanyahu conversa com o Chaver Knesset Ze'ev Elkin, ambos do partido Likud

O primeiro-ministro Netanyahu conversa com o Chaver Knesset Ze’ev Elkin, ambos do partido Likud


O fato de que isso causou uma crise política aguda, a qual quase derrubou o governo, tem contribuído para o modo absolutamente histérico pelo qual os meios de comunicação - tanto em Israel quanto no exterior - têm coberto o projeto de lei: a ruína da democracia de Israel, a destruição do caráter moral de Israel, todos os alarmes foram acionados.

Desde a sua fundação, em 1948, ponderou um auto-proclamado magoado” editorial do New York Times esta semana, a própria existência e o objetivo de Israel - totalmente abraçado pelos Estados Unidos e pelas nações do mundo - foi baseado no ideal da democracia para todos os seus cidadãos.

Oi? Um momento!

Vamos tirar isso a limpo imediatamente: a chamada lei do Estado-nação, que foi aprovada pelo gabinete de Israel esta semana e causou um alvoroço internacional, não é o momento de decisão histórico que dizem ser.

Ele é, sim, a afirmação de uma realidade que está entrincheirada há um tempo muito longo.

Israel, em muitos aspectos, sempre foi mais judaico do que democrático. Mesmo sem uma lei como esta para codificá-los, os seus sistemas jurídico e legal já colocaram, muitas vezes, as necessidades da população judaica de Israel acima da adesão aos princípios democráticos. Cidadãos árabes e outros não-judeus de Israel têm sido sistematicamente discriminados por décadas quando se trata de acesso à educação, terra, infraestrutura, água e representação política.

Daniel François Malan, político sul-africano

Daniel François Malan, político sul-africano


Mesmo sem peças legislativas que soem como se tivessem sido desenterradas dos diários pessoais de Daniel François Malan (n.t. político sul-africano que implantou o Apartheid), Israel tem um sistema legal que permitiu a centenas de comunidades judaicas rejeitar os candidatos não-judeus para que nelas habitem, com base em “adequação social“.

Árabes israelenses não precisavam de novas razões para sentirem-se cidadãos de segunda classe, mesmo que o projeto de lei do Estado-nação atual torne essa situação praticamente oficial. Ele não é a ruína da democracia em Israel - esse navio já navega há muito tempo.

Isso não quer dizer que esta lei não seja ruim ou insignificante. É ruim porque codifica e institucionaliza os piores defeitos de Israel como nação. É ruim porque lança as bases para políticas e legislações mais discriminatórias contra os não-judeus. É ruim, porque no coração dela encontra-se um grande cinismo político, que favorece os eleitores nacionalistas antes das primárias do Likud e de uma eleição que está próxima.

Eu sinto falta dos racistas do passado, disse o CK do Balad (n.t. partido árabe da Knesset) Jamal Zahalka durante um debate na Knesset em 2008. Pelo menos eles não eram oportunistas que buscavam populismo barato. Essa semana Zahalka foi retirado à força do pódio do Knesset pelo vice-presidente do Parlamento, Moshe Feiglin, depois de chamar este de fascista”. Qualquer ato assim, contra os muitos CK judeus - os quais têm chamado os CK árabes e esquerdistas de “traidores“, “amantes de terroristas” e termos piores ao longo dos últimos anos - é impensável, obviamente.

Chaver Knesset Moshe Feiglin, do partido Likud

Chaver Knesset Moshe Feiglin, do partido Likud


Então não, o novo projeto de lei do Estado-nação não é o apocalipse. Israel tem sido um Estado judaico, com o passatempo de ser democrático, por muito tempo. Na verdade, isso deveria ser esperado por qualquer um que não fechasse os olhos para o comportamento de Israel nas últimas décadas.

Mas há males que vêm para o bem: o projeto de lei é tão flagrante, tão claro, que força mesmo os defensores mais árduos e cegos de Israel a abrirem os olhos.

Em outras palavras: bem vindos, judeus da diáspora, à Israel que vocês têm evitado. Por muito tempo, vocês têm defendido um Israel imaginário. O real se assemelha muito com o descrito no novo projeto de lei do Estado-nação.

Por muitos anos, o dinheiro, a influência e o apoio incondicional de judeus da diáspora, particularmente dos Estados Unidos, permitiu muitos dos comportamentos que contribuíram para esse egocentrismo arrogante, o qual fez os políticos israelenses acreditarem que podem fazer o que bem entenderem. Muito disso foi feito em nome de um Israel que nunca existiu, idealizado, um país judaico e democrático que poderia equilibrar suas duas identidades.

Agora que essa imagem está sendo revelada como a ilusão que verdadeiramente é, os judeus da diáspora podem usar sua considerável influência sobre a política de Israel para ajudar a trazer a democracia verdadeira.

Não será uma batalha fácil. Em seu discurso na Knesset na última quarta-feira, Netanyahu permaneceu inflexível sobre suas intenções de passar sua versão do projeto de lei, dizendo a seus detratoresem voz teatralmente chocada - Eu não entendo qual é o problema de vocês.

E, realmente, qual é o problema deles? Não é como se Netanyahu estivesse mudando algo. Ele está simplesmente levantando o véu.

Traduzido do original, publicado por Asher Schechter, no Haaretz, em 28/nov/2014.

Os meninos voadores

Não escrevo desde a guerra, que Israel teima em chamar de “a operação militar do último verão”, o que me deixa com sabor de ter assistido ao filme da sala ao lado. Por trauma, medo, ou simplesmente para tirar a poeira dos ombros e tentar encontrar um mínimo de possibilidade de vida entre os escombros internos, o pessoal de Gaza silenciou-se. Todos, sem exceção, procuram encontrar alguma forma de deixar a região, ideia que tem um misto de luta incansável e sonho distante. Sinto saudades, quero abraçar todos eles, e compartilho do mesmo silêncio ensurdecedor.

Recentemente um garoto do time local de parkour, juntou-se a nós. A legenda da fotografia desses meninos voadores traz o senso de humor que não se deixa abater e que me faz sorrir: “a vida em Gaza está mesmo difícil – Israel baniu até a lei da gravidade!” A professora israelense logo se antecipa: “mas vocês não se quebram todos?” E começamos a trocar ideias de como fazer chegar até eles algum equipamento de segurança. Ironia do destino.

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Os israelenses estão apavorados. Minha amada Jerusalém transformou-se em palco de ataques terroristas, preconceito, ódio e desejo de vingança. Meu coração se apequena ao pensar naquela gente, naquela paisagem que tanto me inspira a alma. Ai, se eu me esquecer de ti…. Mais uma vez, converso com israelenses e palestinos, preocupada, atrás de notícias. A situação na Cisjordânia também não anda nada boa. “Preciso do teu abraço” – me escreve o palestino de Hebron – “ando tão triste”. E seguimos nossa jornada virtual, na certeza de que alguém se importa, em ambas as direções.

Achava graça quando pedia informações nas ruas de Israel, e sempre recebia a mesma resposta: “vá, reto, reto, até o final, até que não haja saída”. O que acontece quando não temos mais saída? As esperanças diluídas, uns poucos lutando bravamente, bonecos, cartazes e espírito de comunhão: “árabes e judeus se recusam a ser inimigos”, mas a imensa maioria se rende ao medo. Não julgo, não tenho este direito. Posso, talvez rezar, acender umas velas. Posso conversar, promover o encontro, mas não posso negar o sentimento de impotência que me invade a cada manhã quando leio as notícias. Que Deus, em Sua eterna misericórdia, se apiede de nós.

Texto publicado originalmente no blog pessoal da autora.

Os compromissos de Rabin e os nossos

Entre 4 e 16 de novembro de 2014, acontece na sede do movimento juvenil Habonim Dror, em São Paulo, a “Exposição Rabin – Paz é Compromisso”. O conceito dessa mostra vai além de trazer conhecimento sobre a vida do ex-primeiro-ministro israelense. Há um objetivo muito claro em todo o percurso dos textos, figuras, sons e vídeos: para concretizarmos nossos objetivos de vida, temos de estabelecer compromissos, e ainda que dificuldades apareçam no caminho, deveríamos manter-nos fielmente comprometidos. A visita à exposição é gratuita e fortemente recomendada para todos.

Nesse artigo, ressaltaremos quatro compromissos inesquecíveis que marcaram o último estadista israelense e como trazê-los para nossa vida.

A família de Rabin e o compromisso com a coletividade

O pai, Nehemiah, nasceu com o sobrenome Rubitzov, na Ucrânia. Emigrou para os EUA e, lá, filiou-se ao movimento socialista judaico Poale Zion (trabalhadores de Sião). Imbuído de sionismo, fez Aliá como voluntário da Legião Judaica, para, na 1a Guerra, lutar com os britânicos contra os otomanos. Na Palestina do Mandato Britânico, Nehemiah também foi ativo na Haganá (organização paramilitar de defesa do Yishuv e base do futuro Exército Israelense) e na Histadrut (união dos sindicatos de trabalhadores judeus).

Rosa Cohen, a mãe, nasceu na Bielorússia. Desde jovem, engajava-se social e politicamente em sua terra natal. O avô materno de Rabin era ortodoxo e antissionista, mas isso não impediu Rosa de participar da terceira Aliá para Israel e assentar-se num kibbutz no Lago Kineret. Mudou-se para Jerusalém, onde conheceu Nehemiah e deu à luz a Yitzhak. Era membra do Conselho Municipal de Tel Aviv, da Haganá, do Mapai (partido político que originou o atual Partido Trabalhista), além de trabalhar com educação.

Rachel (irmã), Rosa e Yitzhak Rabin

O lar dos Rabin possuía compromisso permanente com voluntariado e participação na vida coletiva do Yishuv. Yitzhak absorveu esse compromisso de seus pais e levou-o a um patamar superior.

 A bolsa de estudos em Berkeley e o compromisso com a defesa do Yishuv

Rabin passou seus dois últimos anos de estudante na Escola Agrícola Kadoorie, situada na baixa Galiléia, próxima do Monte Tabor. Ele escreveu, depois, que lá aprendeu valores morais necessários, como honra, confiança e verdade. Ao formar-se, em 1940, obteve uma bolsa de estudos para cursar Engenharia Hidráulica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Ir estudar nos EUA era um antigo desejo, já que seu pai havia morado lá e lhe disse coisas muito boas sobre o país. Entretanto, a 2a Guerra havia começado e o medo de uma invasão nazista na região era grande. Para não abandonar seu compromisso com sua coletividade, seus amigos e sua terra, Rabin abdicou da bolsa e entrou na Palmach, o grupo de elite da Haganá.

Ele nunca obteve diploma universitário.

A conta corrente nos EUA e o compromisso com sua esposa e com a ética

Rabin foi embaixador de Israel nos EUA entre 1968 e 1973, quando retorna para sua terra. Em 1974, torna-se primeiro-ministro. Em 1977, o jornalista Dan Margalit, do periódico Haaretz, descobre que Rabin e sua esposa Léa mantinham duas contas-correntes ativas nos EUA, algo proibido pela lei israelense. No total, havia nelas 10 mil dólares depositados. Léa quis assumir a culpa, sozinha, por não tê-las fechado após retornarem de Washington para Jerusalém. Dada essa situação, Rabin não viu alternativa: deveria manter seu compromisso com a ética, com a honestidade e com sua esposa.

Por duas contas-correntes, por 10 mil dólares, ele renunciou à chefia do Estado de Israel e passou pela apuração do caso ao lado de Léa, como um cidadão comum.

Yuval Rabin (filho), Léa, Papa João Paulo II e Dalia (filha)

A Primeira Intifada e o compromisso com o futuro do Estado de Israel

Entre 1987 e 1993, milhões de palestinos foram às ruas de Gaza e da Cisjordânia para mostrar sua insatisfação com suas péssimas condições de vida, como indivíduos e como nação. Usando paus, pedras e estilingues, atacaram as forças de segurança israelenses. Ao longo de toda a Primeira Intifada, Rabin foi o Ministro da Defesa. Junto com boa parte da sociedade israelense, ele teve dificuldade para compreender a insurgência popular palestina; ordenou que fosse reprimida com violência, não proibiu o uso de munição letal e, alegadamente, comandou que os ossos dos palestinos fossem quebrados. Rabin mantinha firme, segundo seus métodos, seu compromisso com a segurança do Estado de Israel.

Rabin, o “quebra-ossos”

No entanto, em 1988, quando o Rei Hussein da Jordânia abdicou da Cisjordânia em favor dos palestinos, Rabin percebeu que deveria mudar de estratégia. Na 1a Intifada, o povo palestino lutou por seus objetivos sem depender dos demais Estados árabes vizinhos (Líbano, Síria, Jordânia e Egito). Após décadas acreditando que possíveis acordos seriam negociados com esses Estados, e que os palestinos seriam mero detalhe no cenário, a nova realidade gritava à sua volta. Israel deveria negociar com as lideranças palestinas se quisesse manter-se um Estado democrático e judaico. O compromisso de Rabin com o futuro do Estado de Israel passava, obrigatoriamente, por mantê-lo seguro e por iniciar tratativas políticas sérias e concretas com os palestinos.

Dessa mudança de métodos, resultaram os Acordos de Oslo e a paz com a Jordânia.

Da oposição radical à paz com os palestinos, resultou o assassinato de Rabin e, talvez, seu projeto de sionismo.

Rabin, o soldado da paz

Incitações, radicalismos, negações e o compromisso de cada um de nós com Israel

Nós, judeus da diáspora, fazemos doações a instituições judaicas, estudamos a História de Israel, denunciamos o antissemitismo quando o identificamos, celebramos feriados judaicos e fazemos Hasbará incondicional nas redes sociais. Estamos, indiscutivelmente, comprometidos com o Estado de Israel.

  • 95% dos israelenses acreditam que há racismo no país. As vítimas são negros, palestinos cidadãos de Israel, ortodoxos e sefaradim. Devemos estar, incondicionalmente, comprometidos com isso? NÃO!
  • O presidente de Israel, Reuven Rivlin, é alvo de campanhas de ódio e incitação à violência por parcela considerável da sociedade israelense, de forma terrivelmente similar a que Rabin sofreu. Nosso compromisso é, acima de qualquer crítica, com isso? NÃO!
  • As leis de casamento em Israel são profundamente discriminatórias. Temos compromisso automático com isso? NÃO!
  • 8% dos que se declaram judeus, em Israel, têm negados seus direitos a casarem-se, separarem-se e serem devidamente enterrados, devido ao excesso de poder conferido ao rabinato. Deve haver compromisso, sem reflexão, com isso? NÃO!
  • O governo israelense, por meio de políticas e declarações radicais, isola-se assustadoramente do mundo, especialmente dos EUA. Podemos nos comprometer, sem senso crítico, com isso? NÃO!

Optei, propositalmente, por não entrar no tema do conflito. As paixões nele envolvidas são incomensuráveis. Esse artigo é para despertar em você, judeu sionista da diáspora, o desejo de sair da sua zona de conforto, questionar suas verdades inquestionáveis, sua fé cega nas “notícias” que lê no Facebook ou recebe por e-mail. Aqui no Brasil, se não tomamos a iniciativa, só ficamos sabendo dos ataques terroristas. Ou não-terroristas, como o atropelamento que deu a gritaria de sempre mas, como descobriu-se depois, foi um acidente de trânsito com omissão de socorro. O nosso compromisso com Israel é, sim, incondicional, no sentido que queremos que o país exista e o povo judeu tenha lá um lar.

No entanto, comprometer-se com racismo não é um compromisso sionista. Nem com ódio contra opiniões divergentes. Nem com discriminação religiosa. Nem com a existência de cidadãos de segunda classe, com menos direitos que os demais. Nem com a recusa infantil e automática de qualquer crítica, e a imediata desqualificação da crítica como antissemitismo. Isso não é sionismo. O compromisso não deve ser com isso, mas sim com um Estado de Israel democrático, judaico, inclusivo e que trate todos seus cidadãos e vizinhos de forma igualitária e humana. Informe-se, aprofunde-se, questione o que recebe e o que transmite. Promova uma mudança de métodos, como Rabin fez. Seu compromisso com Israel pode, hoje, ser um nó frouxo, que te fazem acreditar ser o único possível. Há outros jeitos mais sólidos, justos e humanos de amarrar-se com Israel.


O Fórum 18 está indo para Israel e Cisjordânia. Além de termos vagas para interessados, precisamos do seu apoio para que a viagem aconteça. Colabore! Fale com Rafaela Barkay:

rafaela@forum18.com.br

(11) 3082-5844

Sim, Lula! O holocausto merece ser nosso maior referencial político!

O jornalista Otávio Dias, editor-chefe do Brasil Post, publicou no último dia 22 um texto estarrecedor intitulado Basta, Lula! Não se invoca o holocausto em vão (clique aqui para lê-lo), contra a menção de Lula ao Holocausto em meio aos debates eleitorais. Esse texto foi amplamente veiculado nas redes sociais por meio da Federação Israelita de São Paulo que, em nota, apresenta o seu descontentamento com a fala de Lula: “Sempre lamentamos quando alguém associa os crimes cometidos durante o nazismo a algum fato do cotidiano como uma campanha eleitoral”, nas palavras do seu assessor de imprensa Ricardo Berkienztat.

O jornalista Otávio Dias, bem como o assessor de imprensa da Federação Israelita de São Paulo Ricardo Berkienztat valem-se da menção ao nazismo para descreditar o ex-presidente Lula, como se este estivesse acusando de maneira indevida os seus opositores.

Afirmo, sem o menor receio, que tanto o jornalista Otávio Dias quanto a assessoria de imprensa da Federação Israelista de São Paulo têm uma visão antiquada e essencialista do que foi o nazismo na história da humanidade, e reitero a necessidade de se fazer referência a ele em toda e qualquer reflexão sobre o momento em que vivemos. Como nos demonstra parte da filosofia social do século XX (Hannah Arendt, Theodor Adorno, Giorgio Agamben, Didi-Huberman entre outros – a maior parte deles judeus), o nazismo não se trata de uma exceção, mas uma possibilidade, uma potencialidade inerente à política. Enquanto tal, deve ser mencionado, debatido e refletido, como única forma de ser evitado.

Mas afinal, o que mesmo disse Lula?

As frases fazem parte de um mesmo discurso, mas uma leitura minimamente atenciosa nos permite ver que o ex-presidente não comparou os tucanos aos nazistas. Lula compara, sim, o passado de Dilma e de Aécio Neves: “Onde estava o candidato, quando essa moça, aos 20 anos, estava colocando a vida em risco na luta pela liberdade desse País? Estava aprendendo a ser grosseiro, a ser mal-educado? ”. Pessoalmente, não acho um bom argumento, pois não me interesso por esse tipo de genealogia. Não sei como foi a adolescência das pessoas que admiro, mas me interesso muito pelo que elas estão pensando e propondo agora.

De todos os modos, Lula, que discursava no interior de Pernambuco, segue sua fala e faz, momentos depois, uma menção ao preconceito existente no país contra os nordestinos: ”Se o Nordeste ouviu, se o Nordeste leu o preconceito contra nós, as injustiças”. Ainda, segue: “Parece que estão agredindo a gente como os nazistas [agrediam] no tempo da Segunda Guerra”.

O jornalista Otávio Dias afirma que Lula ”manteve a estratégia de opor o povo nordestino aos tucanos”. Mas o ex-presidente não relaciona o verbo agredir com o partido tucano. ”Estão nos agredindo”, afirma Lula, de modo geral! E alguém em sã consciência nesse país teria a coragem de dizer que os nordestinos não estão sendo agredidos? Que não existe um preconceito contra essa região do país, afirmando que aqueles que recebem o Bolsa Família não deveriam votar, ou que no Nordeste só votam no PT porque são analfabetos?

Lula segue seu discurso, dessa vez sim, voltando ao PSDB, e afirmando o seu desejo de destruir a imagem do governo Dilma. Mas não vincula, em nenhum momento, o PSDB ao ódio que existe no país a respeito dos nordestinos.

Não obstante, detenhamo-nos alguns momentos no que diz o jornalista Otávio Dias a respeito da preocupação de Lula sobre o preconceito existente contra os nordestinos. Mencionando com uma forte carga emotiva a viagem que fez, quando tinha 25 anos, aos campos de concentração na Polônia, afirma: ”Naquela viagem, aprendi de uma vez por todas que não se brinca com um crime de proporções tão gigantescas como o praticado pelo regime nazista durante o Holocausto”.

Para o jornalista, Lula está brincando, ao mencionar o preconceito existente no Brasil contra os nordestinos. Para mim, aponta a uma realidade preocupante, diante da qual não podemos permanecer calados. Basta ver as menções constantes contra nordestinos na internet, bem como a existência de grupos neonazistas que promovem o assassinato de gays, ciganos, negros, nordestinos e judeus… No Brasil.

Por que não mencionar o Holocausto?

Essa parece ser a pergunta chave: por que não mencionar o Holocausto? O que existe por traz das reticências da Federação Israelita bem como de Otávio Dias é entender o holocausto como uma exceção à história, que não podemos compreender e cuja singularidade não permite ser invocado em nenhuma outra situação.

Essa aura ao redor dos campos de concentração foi tratada em diversos livros, entre os quais ressalto O que resta de Auschwitz, do italiano Giorgio Agamben, e Imagens apesar de tudo, do francês Georges Didi-Huberman. Em primeiro lugar, rechassemos a própria palavra holocausto, que quer dizer o sacrifício de alguém em nome de algo. Os judeus não foram mortos para expiar nenhum pecado, mas pelas mãos de outros homens, com intenções claras e que souberam arquitetar do modo mais perverso possível as máquinas de morte. Doravante, utilizemos o vacábulo Shoá, que quer dizer tragédia. Infelizmente, a áurea religiosa ao redor do holocausto se faz presente no título do jornalista Otávio Dias, ao jogar com o mandamento não mencionarás o nome de Deus em vão.

Em segundo lugar, os campos de concentração, como bem nos mostra Hannah Arendt, foram projetados para que ninguém acreditasse em sua existência. Eram inimagináveis. Entretanto, foram imaginados, projetados e colocados em prática. Não podemos cair na armadilha de considerá-los inimagináveis. São produtos humanos e de certa sociedade, com certa concepção de poder, partes de nossa cultura como o são as pirâmides para a cultura egípcia, como afirma o intelectual francês Georges Bataille.

O nazismo e a Shoá têm, sim, suas singularidades, o que não quer dizer que não comparta pontos com outros eventos trágicos na história da humanidade. Foi a única vez que uma organização estatal se estruturou sistematicamente para o extermínio de uma população específica. Mas o extermínio mais ou menos sistemático de populações, mais ou menos estruturalmente promovidos por Estados, dentro de jogos econômicos e de poder, não é exclusividade do nazismo.

Para aqueles que não tenham interesse em ler os livros de filosofia política e social a partir da Shoá,recomendo que assistam ao brilhante documentário de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição (disponível online aqui). Nele, se torna claro como o nazismo analisa o seu entorno a partir do conceito de decadência do mundo moderno e se propõe a regenerá-lo. Peter Cohen defende que os nazistas entendiam sua tarefa como um processo estético, de embelezamento, que incluía uma teoria específica sobre a nova cultura a ser forjada e os degenerados a serem exterminados: pessoas com deficiências físicas e motoras, judeus, esquerdistas, ciganos e gays.

A Federação Israelita desrespeita a memória da Shoá

A Federação Israelita, pelo passado daqueles que representa, tem o dever de divulgar uma nota rechaçando qualquer comentário racista e preconceituoso existente no país. E não criar relações em um discurso que não existe (repito, Lula nunca afirmou que a oposição seria nazista), para entrar em um jogo político menor.

É justamente pelo tamanho das tragédias que ocorreram nos campos de concentração que necessitamos dar uma resposta radical a qualquer elemento que se assemelhe a isso. Não, o Brasil obviamente não está em vias de instaurar campos de concentração contra nordestinos e homossexuais (assim esperamos!), o que não retira nosso dever em combater qualquer mensagem de ódio a quem quer que seja, por sua cor de pele, religião, etnia ou orientação sexual.

Mas existem elementos mais perversos nesse debate a respeito da memória da Shoá. A reportagem de Otávio Dias tem uma finalidade muito específica, de difamar o ex-presidente. O partidarismo do jornalista se torna claro nessa frase: “Ao fazer declarações irresponsáveis como as feitas nesta terça diante de milhares de pessoas em Pernambuco, Lula desrespeita não somente os milhões de mortos e aqueles que sobreviveram ao genocídio nazista como a todos os brasileiros que, exercendo seu livre direito ao voto, preferem apoiar a oposição nestas eleições. E, segundo as pesquisas de opinião, eles são quase 50% dos eleitores”.

A Federação Israelita, órgão supostamente neutro e de defesa da comunidade judaica ante a sociedade em general e ao Estado brasileiro, também parece entrar dentro desse jogo político menor, desrespeitando ela sim a memória da Shoá, divulgando um artigo partidário como o do jornalista Otávio Dias e gerando comentários extremamente classistas em sua página no Facebook, vinculando um antipetismo cego, como: ”O Brasil elege um operário, sem estudo, sem escrúpulo, semianalfabeto… Dá nisso! Espero que nós judeus nos unamos em campanha para tirar o PT do comando deste País”.

De modo muito claro: 1) Lula nunca afirmou que tucanos sejam similares a nazistas; 2) o nazismo deve ser pensado como uma degeneração que pode surgir da política, e não uma exceção; 3) quem faz mau uso da memória da Shoá é a Federação Israelita e o jornalista Otávio Dias, deliberadamente, para favorecer um partido específico.

Como judeu, de esquerda, avesso a quaisquer tipos de nacionalismos, e que trabalha no campo da arte, elementos que fariam de mim algo como um alvo ideal aos olhos de um nazista – tal como foram meus familiares e seus próximos –, concluo, afirmando a necessidade de se entender sistemicamente o holocausto como o momento mais sangrento e trágico de um processo histórico maior de instauração da modernidade e do capitalismo. Uma política de extermínio que soube unir o ódio mais bestial ao diferente identificado como degenerado nas figuras dos judeus, dos homossexuais e dos ciganos, para defender uma ideia de nação, uma saída à crise econômica e uma resposta contundente ao que consideravam o bolchevismo.

O nazismo deve ser visto, como nos mostram os mais interessantes autores de filosofia social e política, como uma possibilidade inerente de degeneração de todo processo político, uma potencialidade deste, e não sua exceção. Como tal, deve ser mencionado e relembrado, para que nunca mais se repita, onde quer que seja, e com quer que seja. Como afirmou, em justos termos, o presidente Lula, quando de sua visita ao Museu do Holocausto (Yad Vashem), em Jerusalém: “Todos os que querem dirigir uma nação deveriam visitar o Museu do Holocausto para saber o que pode acontecer quando a irracionalidade toma conta do ser humano”.

PS: Aos que tiverem interesse em ler minhas críticas ao PT, recomendo o artigo que escrevi sobre o antipetismo, em que aponto para problemas estruturais na política do governo Dilma, aqui.

Texto publicado originalmente no blog Gusmão.

Sobre empatia e “o outro”

Essa conferência, do sociólogo estadunidense Sam Richards, possui mais de 1 milhão de visualizações. Nela, ele encoraja uma “troca de papéis” entre a platéia americana e dois personagens distintos (invasores chineses e insurgentes iraquianos).

Não parece algo tão difícil para nós, brasileiros, enxergar como seria estar na pele dos chineses, dos iraquianos ou dos próprios americanos, que passaram 8 anos no Iraque e perderam quase 5 mil jovens. Afinal, nosso país é pacífico com seus vizinhos, nossa última guerra aconteceu há mais de um século, não sofremos com ataques aéreos de “drones” ou homens-bomba… Não temos os medos e os traumas deles.

Agora transporte esse exercício para o conflito entre israelenses e palestinos. Tente entender, genuinamente, como se sentem esses personagens (não tão) hipotéticos:

– Mulher israelense, judia, 60 anos, residente de Tel Aviv. Defendeu Israel na Guerra de Yom Kipur, em 1973, onde viu amigos e conhecidos serem mortos. Sua mãe é refugiada do Holocausto e seu pai foi morto no campo de extermínio de Majdanek, na Polônia. Um de seus netos serve ao Exército, protegendo o assentamento de Kiryat Arba, em Hebron.

– Homem palestino, muçulmano, 25 anos. Nasceu em Gaza e nunca saiu desse lugar. Amigos seus estão engajados na resistência armada, alguns mortos em combate nesta última guerra. Seu bairro foi alvo de bombardeios israelenses, onde famílias inteiras de vizinhos foram mortas. Seu avô e sua avó maternos foram expulsos de Haifa em 1948.

Se a leitora e o leitor quiserem deixar impressões e comentários no espaço abaixo, fiquem à vontade. O importante é chegar o mais perto possível de sentir o que essas pessoas sentem, especialmente quando fala-se de liberdade, segurança, ocupação e terrorismo. Isso é empatia, um item mais em falta nesse assunto do que chuva em São Paulo.


Teste do quociente empático (em inglês)
Teoria da empatização – sistematização (em inglês)