Ok, isso não é inteiramente verdade. Eu não prefiro andar com muçulmanos mais do que qualquer outra pessoa, de qualquer outra religião ou cultura. Mas eu amo meus amigos muçulmanos e sou apaixonada pelas suas filosofias, ensinamentos e estilos de vida. Mas o título deste texto vem como uma resposta a qual as pessoas me perguntam bastante. E esta história teve início em Sarajevo, na Bósnia, em Junho de 2013. Ou talvez até antes.
Eu fui criada como judia. Filha de pais judeus, frequentei uma escola judaica, fui a sinagogas em festas e Shabatot, fui membro de um movimento juvenil judaico. Eu tive o judaísmo em minha vida como religião, como cultura, como história e até – se posso cruzar algum tipo de linha aqui – como um nacionalismo. E sou judia hoje, por opção. Eu amo o judaísmo.
No entanto, durante minha infância e adolescência, escutei muito sobre os problemas entre judeus e muçulmanos ao longo do tempo. Meus pais tiveram que deixar seu país natal porque Gamal Abdel Nasser forçou a saída de judeus do Egito. O mesmo aconteceu em outros países árabes. E hoje em dia temos o famoso conflito entre Israel e Palestina, que, claro, envolve muçulmanos e judeus. Porém – e não posso explicar como ou porque – nunca aceitei este “problema”, nunca pude entende-lo e jamais consegui fazer a conexão entre as pessoas envolvidas nestes embates com suas culturas e religiões.
Como disse, não sei porque. Talvez o motivo tenha sido as maravilhosas histórias que meu pai me contava de sua infância no Cairo, onde ele tinha amigos judeus, cristãos e muçulmanos. E eu sempre me perguntei o que exatamente tinha quebrado estas amizades. Teriam elas sido realmente quebradas?
Adicionalmente, minha curiosidade cresceu com meu amor inexplicável pela cultura árabe. Adorava escutar o árabe, a comida árabe, a arquitetura árabe, a música árabe, a dança árabe e o cinema árabe. Em certo ponto, comecei a frequentar uma sinagoga de judeus marroquinos, bem árabe.
Eu tinha que descobrir mais sobre tudo isso. Depois de ir a Israel cinco vezes – a primeira delas por um ano inteiro – e nunca tido a chance de conhecer um muçulmano em um país repleto de pessoas da religião, eu tentei encontrar minhas respostas em outro lugar. Fiquei sabendo da Conferência Judaico-Muçulmana em Israel mesmo, em 2011, onde conheci um dos seus fundadores. Em 2013 me inscrevi. Em Junho eu estava em Sarajevo, um lugar que jamais sonhei que poderia conhecer um dia.
Sarajevo em si, uma cidade muçulmana, é incrível. O lugar e as pessoas. A realidade estava acontecendo! Eu finalmente poderia conhecer muçulmanos e conversar com eles, discutir nossos “problemas”. Até entrei no Comitê de Resolução de Conflitos. Até que descobri que nós, na realidade, nunca tivemos problema algum. Não nós, que estávamos ali. Nós não tínhamos problemas. Tínhamos soluções. Levamos estas soluções conosco, em nossos longos voos até a Bósnia. Nós possuíamos objetivos comuns, culturas muito parecidas a uma enorme paixão por estar lá, juntos. Também descobri que eu estava ali para fazer amigos. E amigos a gente não escolhe pela religião, pela cor ou por nada. Amizade é uma coisa que acontece. Então lá pelo segundo dia, a pergunta “… e você é judeu ou muçulmano?” simplesmente foi parando de ser feita. Depois de um tempo, com alguns hábitos culturais, nós sabíamos, é claro. Expressões em árabe ou hebraico, histórias sobre Israel ou Meca, alguns costumes religiosos ou símbolo em uma bijuteria, nós sabíamos. E não éramos somente judeus e muçulmanos. Éramos também budistas, cristãos, ateus e mais.
Conheci muitas pessoas legais em Sarajevo. Foi a viagem da minha vida, adquiri esperança e a resposta que estava procurando. Não existe um problema real. E com pessoas daquele tipo, é possível resolver os problemas inventados.
Foi quando conheci a Sarah. Uma menina marroquina, doce, linda e divertida. Adorável. Ela é mais nova do que eu e ama muito seu país, não conseguia parar de falar coisas legais sobre ele. Me levou algum tempo para entender se a Sarah era muçulmana ou judia. Seu nome me sugeriu que ela tinha alguma ascendência judaica – como de fato ela tem. Ela nunca usou o hijab. Na sexta, ela decidiu não ir na mesquita nem na sinagoga (nas quais, aliás, grupos de muçulmanos e judeus foram juntos para celebrar o Shabat e a Jumah). Mas, de fato, ela era muçulmana. Com um sotaque em inglês cativante. A Sarah foi embora de Sarajevo na sexta à noite, dois dias antes de mim, o que quebrou meu coração. Ela insistiu que fossemos visita-la no Marrocos.
É uma incrível benção poder conhecer pessoas do mundo inteiro, de culturas e passados muito diferentes. Pode-se dizer que viajo bastante e, se você me perguntar, não importa qual o objetivo da viagem, conhecer pessoas é sempre a melhor parte e o maior aprendizado. Mas é ao mesmo tempo muito triste, porque uma vez que os cursos ou as conferências que frequento terminam, sei que as chances de reencontrar a maioria delas são muito pequenas. E isso me deixa muito, muito triste.
Eu voltei de Sarajevo e comecei a realizar meu sonho de estudar árabe. Conheci minha professora antes de saber que ela era filha de mãe judia é pai muçulmano. Ambos eram comunistas e se conheceram na União Soviética. Se casaram e foram morar na Síria. Eu também voltei para um dos meus hobbies favoritos, a dança do ventre. Confesso que amo muito mais pela música.
Cerca de cinco meses se passaram, a Sarah e eu continuamos nos falando por facebook e por whats app. Fui aceita em um curso para professores no Yad Vashem, em Jerusalém. E, meio que do nada, pensei que seria uma grande oportunidade para parar em Marrakesh, ver minha amiga e conhecer um lugar novo. Então mandei uma mensagem pra ela: “Querida, você falou sério sobre eu ir para Marrakesh?”. E ela respondeu: “Claro! Você ficará na minha casa, venha quando quiser”. Então eu fui. Simples assim.
Sobre esta viagem, tenho muitíssimas coisas para falar. Marrakesh é incrível. Tudo, as pessoas, as casas e os prédios, as palmeiras, o chá, o souk, o trânsito caótico e a beleza. A gentileza do povo. Eu realmente fiquei com a Sarah, na sua casa, com a sua família e passei meus dias no Marrocos com os amigos dela. Este foi o ponto alto da viagem. Estar com todos eles.
Não consigo descrever a recepção que me fizeram – algo que é muito comum e não foi exclusivo para mim. Me senti em casa depois de dez minutos lá. Chorei quando fui embora uma semana depois, porque eu ia sentir muitas saudades daquelas pessoas.
Eu rezei com meu sidur na casa da Sarah todos os dias. Guardei o Shabat lá. Eles me fizeram comida kasher. E eles rezaram também. Tão lindo, tão tocante vê-los rezar. O mesmo amor por uma força superior que eu vejo em preces na sinagoga. Eu visitei os lugares sagrados deles e eles me levaram aos meus. A Sarah veio comigo a uma sinagoga incrível, onde todos foram muito receptivos e ninguém nos perguntou de onde éramos ou porque estávamos ali. As pessoas lá não faziam a menor ideia de que nós duas éramos uma menina judia e uma muçulmana.
Os dias passaram rápido demais, enquanto eu escutava ao árabe e à música e apreciava as vistas. Os amigos dela (espero poder chamá-los de meus amigos agora) são demais. Alguns deles bebem, outros não. Alguns deles fumam, outros não. Alguns deles me perguntaram sobre a minha religião e quiseram saber o motivo dos judeus odiarem os muçulmanos. Ao que eu respondi que não odiamos. Nós continuamos conversando sobre isso até rirmos e concordarmos que somos iguais. Provavelmente a conversa mais valiosa que já tive em minha vida durante meus 28 anos.
Durante estes dias, naturalmente e uma vez mais esquecendo que eu era uma judia no meio de muçulmanos, nós conversamos sobre tudo. Sobre a vida, a faculdade, carreiras, a vida no Brasil, a vida no Marrocos, o amor contido na Torah e no Corão. Descobrimos que temos muitíssimas coisas em comum. A principal delas é que entendemos nossas religiões como símbolos e mensagens de amor. E que sim, há pessoas que usam elas para arruinar a beleza da vida com palavras de ódio. Mas, acredite ou não, estas pessoas são a minoria entre nós. Elas só tem mais dinheiro para investir em propaganda.
Então, tentando responder à pergunta do título, eu amo – e não prefiro – estar entre muçulmanos porque isso faz eu me sentir como um ser humano, assim como eles. Isso me faz esquecer que exista um problema. Eu amo estar com muçulmanos porque eles têm uma cultura incrível, pela qual sou apaixonada. É mais fácil para mim estar entre muçulmanos, porque eles são curiosos sobre minha religião e minha cultura e, ao mesmo tempo, não julgam meu judaísmo. Meu judaísmo pessoal é meio difícil de explicar. Está em todo lugar em mim. Na minha fé, na minha história, no meu trabalho, nos meus costumes, nos livros que leio. Não é puramente religioso, nem puramente tradicional. É tudo. Algo que, acredite ou não, muitos judeus não conseguem entender. Sim, é muito fácil para mim ser judia entre meus amigos muçulmanos.
Tenho muito a agradecer à Sarah por fazer parte da minha vida e me proporcionar o que foi a melhor experiência (toda nova experiência acaba sendo a melhor da minha vida). Tenho que agradecer a ela por me ensinar sobre amor, por compartilhar comigo sua família e seus amigos. E por me colocar em contato com a parte mais linda do meu judaísmo. Devo agradece-la, ainda, por me aceitar do jeito que sou: uma mulher mais velha do que ela, branca, loira, brasileira, judia, historiadora, filha de egípcios, uma pessoa apaixonada por Israel (e, me deixe ser clara, pela Palestina também). Obrigada, Sarah.
Quando deixei o Marrocos fui para Jerusalém. Lá tive dias incríveis também com um grupo da América Latina, judeus e não judeus. Nós estudamos sobre o Holocausto, somos professores. Percebemos, juntos, que tudo o que vimos é só mais uma prova que o ser humano deveria se dar a oportunidade de conhecer uns aos outros melhor. Preconceito pode nos levar a atos extremamente horríveis. E esta também foi a melhor experiência da minha vida. Agora eu sinto tanta falta destas pessoas também, e estou bem triste em pensar que temos poucas chances de nos encontrar novamente. Que a vida permita cruzarmos nossos caminhos de novo.
Em Israel eu passei o Shabat com judeus observantes e não observantes. Com pessoas que não são judias também. Cantamos, alguns de nós rezaram, todos pudemos nos conhecer melhor. Foi um sábado maravilhoso. Depois de tudo, encontrei com alguns dos meus amigos. Religiosos, não religiosos, ateus – todos judeus. E me senti bem demais com todos eles também. Como escrevi anteriormente, o título foi mais para chamar sua atenção. Mas foi também uma tentativa de responder a pessoas que pensam que de alguma forma eu fiquei maluca em algum ponto da minha vida e comecei a andar com muçulmanos. Eles me perguntam: “por que você prefere estar com muçulmanos do que com judeus?”. Então eu lhes digo. Eu prefiro estar com pessoas. Mas pessoas que podem trazer algo para minha vida e para as quais eu possa acrescentar algo também. E espero que isso possa significar todo mundo. Inclusive quem me faz esta pergunta. Eu sei que estas pessoas me trouxeram a oportunidade de escrever este texto – quem sabe alguém vá ler. E eu espero que estas pessoas leiam e abram suas mentes e seus corações para o fato de que todos somos o mesmo. Que “amarás o próximo como a ti mesmo” significa o que significa. Não há pensamentos escondidos por trás. A Bíblia não está dizendo que próximo devemos amar. E se eu tenho alguma faísca bem pequena de sabedoria acumulada em 28 anos, deve ser que nós só podemos amar depois de conhecermos o outro. E só podemos conhecer nos esforçando, conversando e nos aproximando, de corpo e alma.
Sobre os amigos do meu pai lá do Egito, que escrevi logo no começo. Ao longo da vida, com a internet, eles conseguiram se encontrar pelo mundo inteiro. Todos estão na casa dos 70 anos. E agora eles se encontram uma vez por ano. Todos eles. Muçulmanos, judeus, cristãos e de todas as religiões. Nunca houve um problema.
Eu tenho uma frase favorita na religião. É parte da Ética dos Pais e diz o seguinte: “Quem é o sábio? Aquele que aprende de todo homem”.
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Texto publicado originalmente no blog Oriente Médio Hoje.
Este e outros textos da autora podem ser conferidos em http://www.jornal.ceiri.com.br/author/carla/